A
grande explosão das Redes Sociais trouxe consigo seus efeitos deletérios
como a chatice desenfreada das frasinhas
de auto-ajuda, da religiosidade rasteira, das abobrinhas em larga escala. Mas,
com o quadradismo com que os anos me foram achatando, tenho que reconhecer
alguns benefícios inequívocos: a reaproximação de colegas e conterrâneos
distantes e , nos grupos, a
democratização das fotos antigas do Crato. Recentemente, foi publicada uma que
me pareceu interessantíssima. Mostrava o Crato Tênis Clube nos anos 60, com
dois políticos locais importantes sentados numa mesa, num jantar festivo.
Seguiram-se à foto uma imensidão de comentários afeitos todos às figuras
importantíssimas que estavam no primeiro plano, numa homenagem, diga-se, justa
e merecida. Pus os olhos na fotografia e, de chofre, divisei, no segundo plano,
personagens que até então tinham sido totalmente esquecidos, dois garçons
famosíssimos na cidade : Fuinha e Iguatu.
Acredito que eles representam um pouco a tônica do meu pobre trabalho de
cronista, aqui na região, nestes quinze anos em que venho escrevendo com alguma
regularidade. Tenho a vista voltada sempre para o lado oficioso da cidade, até
porque já existem historiadores de grande envergadura, bem mais abalizados, para narrar a face mais visível e oficial
desta terra. Interessa-me a face oculta: os poetas, boêmios, místicos,loucos,
artistas e beatos porque pressinto que se a história oficial dá corpo à Vila de Frei
Carlos, são estes outros que lhe imprimem a alma.
E
, neste sábado, venho fazer uma grande reverência a uma das figuras mais
irreverentes deste Crato. Chamava-se
Manoel Favela Pantaleão, mas era conhecido, por todos os recantos dessa
cidade, pelo sobrenome intermediário : Favela. Nasceu em Exu em 20 de Maio de
1924, há exatos 88 anos. Ainda rapazinho veio para o Crato e aqui fez o seu
reinado. Alma boêmia, tornou-se músico e tocava seu instrumento nos cabarés da
Rua da Saudade e, depois, acompanhou a saudosa rua nas suas mudanças , à medida
que foi sendo engolida pelo progresso. Violonista admirado e incensado-- diziam
que arpejava o violão até de cabeça para baixo-- junto com Pedro 21, tornou-se
um mito. Levou seus acordes ainda para o nomadismo dos circos que por aqui
passavam, acompanhando-os Brasil afora. Junto com a música foi tecendo toda uma
mitologia de presepadas e chistes que terminaram por impeli-lo à área do
folclore. Esposado pela Boemia, como bom Homem da Noite, nunca casou, teve um
relacionamento com uma das saudosas Damas de Vermelho e ficaram dois
rebentos que hoje lutam pela vida no Sudeste.
Favela
foi, durante toda vida, um boêmio profissional, morava sozinho e, já velho,
ainda utilizava todo dinheiro da aposentadoria com as bebidas e as mulheres. Há
uns dois anos, foi premiado no Cariri da Sorte : mais de 30.000 Reais lhe
caíram nas mãos. As sobrinhas orientaram-no para fazer uma poupança, guardar
para os dias futuros. Favela não tinha vindo ao mundo como formiga, mas sim
como Cigarra e respondeu-lhes com uma pergunta da mais profunda filosofia
hedonista : Guardar ? Para levar para onde, meninas ? Meteu-se novamente em
meio às namoradas e o álcool e não sossegou até transformar todo o pretenso
tesouro em puro prazer.
São
inúmeras as presepadas que se foram colecionando a seu respeito. Vou elencar
apenas algumas, na certeza que quase todo cratense que com ele conviveu, sabe
de alguma munganga dessa figura célebre.
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Favela
gostava muito de freqüentar o Café de Roseno que nos anos 50-60 existia na Rua
Bárbara de Alencar, onde hoje é o Ponto Dentário do inesquecível Maurício
Almeida. A razão era simples, adorava um Doce de Banana de Botão que lá
vendiam. Um dia , lá chegando, fez o pedido da terrina de doce e quando começou
a comer, teve dificuldade de mastigar. Tinham usado bananas muito verdes e as
rodelas tinham ficado duras demais para serem trituradas pelas próteses
dentárias de Favela. Depois de alguns minutos, tentando em vão, rodando as peças
de um lado para outro, ele reclamou cheio de razão:
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Não ! Não tem quem coma isso não! Eu pedi, Roseno, foi doce de Banana, não foi Pedra de Gamão, não !
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Antonio
Favela , um irmão dele, trabalhava na Cantina do Oliveira e adorava ralhar com
Manoel. Um dia, vendo-o passar do outro
lado da rua, resolveu mexer com ele e mandou o clássico xingamento :
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Manoel ! Vai ali na Praça Siqueira Campos prá ver se eu tou lá !
Manoel,
sem se alterar , responde na bucha:
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Vou já, Antonio, mas tenho que passar em casa primeiro !
---
Em casa ? Por quê ? -- Quis saber o
irmão.
---
Por que se tiver um cabestro eu já levo, prá não dá duas viagens !
Favela
voltava de madrugada, violão às costas, após o show no Cabaré, quando foi
abordado pelo terrível Major Bento. O militar foi um delegado violento da
cidade que, numa determinada época, estabeleceu um Toque de Recolher por aqui.
Vendo o músico quebrando o Toque, na rua àquelas horas , o abordou
grosseiramente. Favela, então, explicou que era músico , que tocava nas Casas
Noturnas da cidade e que estava, pois, a
trabalho à noite, aquilo era seu meio de vida. O Major não quis saber, ríspido
falou:
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Me acompanhe, cabra !
Favela,
de pronto, sacou o violão das costas, dedilhou as cordas e respondeu:
---
Pois não, Major! Em que tom ?
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Antonio
Primo de Brito é uma das memórias mais prodigiosas desta cidade e foi grande amigo de Favela. A mor parte
destas histórias foram a mim repassadas
por ele. Um domingo, Favela chegou cedinho na casa do ex-prefeito . Pediu R$ 100,00
emprestados. Precisava pagar uma dívida de última hora. Antonio Primo remexeu os pertences e só encontrou R$ 50,00.
Meio a contragosto avisou-o da triste novidade. Favela não se enrolou:
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Tem problemas ,não, Antonio! Me dê os R$ 50,00! Você é um homem direito e vou
confiar em você, depois você me paga os outros R$ 50,00.
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De
outra feita, Favela acompanhou a seleção do Crato que aí pelos anos 70 ia jogar
em Baturité. O motorista do ônibus de carreira era uma outra figura antológica
: Moço Lídio. O coletivo vinha apinhado de passageiros e viajava à noite.
Favela—que tinha problemas de dormir naquelas horas—resolveu ir lá para frente,
ficou sentado conversando com o motorista. Já chegando na cidade de
Independência, numa grande descida da serra, o carro deu um estralo e embalou,
ladeira abaixo. Tinha quebrado o freio. Moço Lídio foi aprumando e sustentando
o veículo como podia, para ver se conseguia chegar à cidade de Independência,
lá embaixo, o que seria a única salvação possível. Favela manteve-se
impassível. Nisto, uma senhora passageira percebeu o estralo estranho , a
velocidade e o risco que estavam passando, correu lá prá frente aflita e
gritou:
---
Valei-me meu Deus ! Motorista, o que
isso significa ? Diga !
Favela,
sentado, tranqüilo, resumiu para ela o problema:
---
Ora, minha Senhora : Independência ou Morte !
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No
dia doze de janeiro último, o violão
silenciou. A velha Rua que um dia chamou-se Saudade perdeu uma de suas vozes
mais poderosas. E a história sentimental da vila que um dia foi tão fértil e
verdejante , hoje , mais que nunca , se transformou em Favela.
J. Flávio Vieira
5 comentários:
que delícia de texto!
Zé Flávio você tem toda razão: pessoas como Favela (que tive o prazer de conhecer agora) são muito importantes numa cidade, são tipos sociais que retratam não o pitoresco, mas o humano, com suas peculiaridades e riquezas.
Abraço a Stela pela paciência reiterada em ler textos tão compridos.
Abraço,
Zé Flávio
Como é que pode, Zé Flávio?
- Eu não conhecia Favela...
Depois desse texto ele ficou vivo.
Perigosamente maravilhosas as escritas deste escritor!
Abraços.
UM REGISTRO DE FATOS DO COTIDIANO
NUMA CRÔNICA TÃO BEM ELABORADA. A
PRESENÇA DE ESPÍRITO DE FAVELA, NA
SUA NARRAÇÃO, É CONTAGIANTE.
DELEITEI-ME COM O ESCRITOR O MÉDICO E O POETA QUE VC. ENCARNA. OBRIGADA
PELO PERTINENTE TEXTO
BASTINHA JOB
Abraço a Socorro e Bastinha que carregam consigo a boêmia tão presente em Favela
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