por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 28 de outubro de 2011



O Cruzeiro - 6 de junho de 1959
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A história do ciúme

Está morrendo? Não, não está morrendo. Antes morresse. Mas, conforme diz o médico, pode viver assim muitos anos, pode até enterrar a todos nós.

Meu Deus, quando olho para a criatura, todo torto, atirado naquela cama, a mão em gancho, o pé duro, a bôca de lado, os olhos muito abertos e me parecendo tão humildes - vou tendo aquêle dó. Coitado, que sorte infeliz! mas aí me lembro do que êle fez, e me ataca um ódio, que piedade nenhuma abranda. Teve um ictus. Assim que o doutor diz: a gente diz que foi derrame, paralisia, ar - êles dizem ictus. Tomei horror de médicos; as mentiras que êles podem inventar, êsses nomes em latim e em grego que usam para confundir os leigos - e o pouco caso que têm pelos "leigos"!

Justamente, êle é médico. Ou era, porque agora só pode pensar no tempo passado. Era, fazia, queria. Agora é um morto-vivo. Castigo de Deus, não há dúvida nenhuma. Castigo; Deus é pai, mas também pode punir.

* * *

E pensar que o nosso caso começou por intermédio das crianças. Na praia, a Regininha, que tinha então três anos, cavava buracos na areia. Jorge, o mais velho, batia bola com um bando de garotos. Êle chegou, - um môço sério, magro, muito branco, via-se que não costumava vir à praia com freqüência e se queimar de sol. Deitou-se na areia, perto da menina e daí a pouco estava a cavar um túnel junto com ela. Jorge aproximou-se, desconfiado, era muito zeloso da irmã. Quando levantei de novo os olhos do jornal, vi que o môço chamava o vendedor de "kibon". Regina veio me perguntar se podia tomar sorvete, o estranho se aproveitou para falar comigo, disse que as crianças eram muito simpáticas, bem educadas - essas lisonjas que facilitam uma aproximação.

Poucos meses depois estávamos casados. Hesitei muito, a princípio, sempre tivera mêdo de dar padastro aos meus filhos, e além disso fôra tão infeliz no primeiro casamento. Mas a verdade é que fiquei louca por aquêle homem. E êle por mim, faça-se justiça. Apesar da terrível crueldade do que fêz comigo, não posso negar que gostasse muito de mim. Creio mesmo que tudo nasceu justamente dêsse amor que êle me tinha.

Na nossa lua de mel, as crianças ficaram com minha irmã mais velha. Mas ao voltarmos de Campos do Jordão, trouxe-as de volta para o apartamento. Só aí confesso que foi um pouco difícil habituar meus filhos à presença nova daquele homem, ocupando um lugar que antes era só dêles. Regina não se conformava em dormir sòzinha num quarto e Jorge, apesar de aos sete anos se considerar um rapaz, vinha de madrugada me pedir remédio, alegando dor de barriga, dor de dentes, insônia. Eu fingia não perceber a irritação de meu marido, que me parecia desarrazoada; afinal de contas, tratava-se de crianças, e êle devia ter pensado nisso tudo quando se resolvera a casar com uma viúva, mãe de dois filhos pequenos. Êle, porém, não cedia, não se comovia; ao contrário, deu para se irritar com tudo, mas tudo, que os meninos faziam. Certa vez Regina o tratou por "você" e êle reagiu como se fôsse um crime de lesa-majestade: "Senhor, tem que me chamar de senhor! Que educação é essa?" Se os garotos pegavam num objeto dêle, se apanhavam um lápis, se rasgavam uma revista, se abriam uma gaveta, eram explosões ferozes ou dias inteiros de zanga. A maior injúria era eu me deitar na cama com as crianças. No dia em que Jorge teve dor de ouvido e eu fiquei com o menino no quarto, parecia até que eu estava traindo meu marido com outro homem.

Meus filhos iam se habituando a só me fazer carinhos e só conversar comigo quando me viam sòzinha. Na frente dêle, tomavam um ar distante, sonso, ou medroso, que me enchia de angústia e sentimento de culpa. Curiosa foi a sanção que tàcitamente adotaram contra o padastro; deixaram de o chamar de "tio", como faziam a princípio, (de "papai", como eu tentara ensinar, nunca o chamaram) e até mesmo de "Dr. Paulo", como ùltimamente. Para os meninos, meu marido deixoiu de ter nome. Quando se viam forçados a uma referência direta, diziam constrangidamente “êle”.

Já estávamos casados há poucos mais de dois anos e a situação cada vez se agravava mais. Parecia-me intolerável o modo de Paulo tratar meus filhos, e, lá no fundo do coração, mais de uma vez me ocorrera a idéia de um desquite. Não tomava decisão nenhuma - Senhor, que amôr eu tinha àquele homem! - mas nem tanto amor me cegava, vendo aquela dureza, aquêle ciúme - (claro, tudo no fundo não passava de ciúme) de um homem feito, quarentão, contra duas crianças sem pai.

A crise chegou afinal, no dia seguinte ao aniversário de Jorge. Veio tão diferente do que eu esperava, tão imprevista, que não pude agir de outro modo. Deus que me perdoe, se não escolhi meus filhos. Mas na hora me parecia até que eu estava sendo heróica, que me sacrificava por êles...


O Cruzeiro on line é um trabalho de preservação histórica do site Memória Viva

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