por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



terça-feira, 19 de abril de 2011

CRÓNICAS FRANCESAS (I) - Por Barbosa Tavares



Num daqueles plúmbeos e ensimesmados dias, em que a alma rodopia em torno das cogitações vividas, dei comigo a debulhar as minhas imberbes e contristadas convoluções francesas.

Meu pai, tocado pela mais protectora das intenções patriarcais, dizia-me numa voz sombria a roçar o fatídico: "Olha rapaz. Eu andei na tropa, em exercícios, todo molhadinho, roupa colada ao corpo, a rastejar e era tempo de paz. Escreve ao teu tio que te arranje um contrato de trabalho e vai para França."

Num domingo aziago, no longínquo e desditoso ano de 1965, surgiu um engajador de recente extracção luso-gaulesa na tabernória da qual meus pais retiravam um terço da magra côdea da vida — os outros provinham de um salário de guarda nocturno e do amanho esmerado de um quintal, na ruela das Cancelas, pertença de uma senhora donairosa, de rosto luzidio e açafroado, eternamente vestida de luto.

Da terra acarinhada, brotava fertilidade a rodos: legumes, hortaliças vicejantes que minha mãe carregava no dealbar da matina rumo ao mercado. Na véspera relembrava-me, com a tónica colocada no meu dever filial "Rapazinho. Amanhã no quintal, sete da manhã, para me ajudares no carrego."

Confinava esta quintarola, arrendada a mil e duzentos escudos ao ano, com a casa de um dos irmãos Pachachos, nome terno como a terna simplicidade de quem calcorreava descalço as veredas da vida, invocativo de extrema humildade, paciência e carro de bois gemicante no seu chilrear, atrelando cargas de areia, lenha e sacos de milho, na serena pacatez da tarde modorrenta.

Revejo-me neste cenário das sementeiras, regadios e colheitas, ajudando meu pais. Nas manhãs de Inverno, uma geada finíssima resplandecia cristais de sol sobre a horta e das couves desprendiam-se gotículas orvalhadas.

De mãos regeladas, eu ateava uma fogueira para aquecer num enorme latão as nabiças, couves e farinha com que os bacorinhos — enlevo e orgulho de meu pai — germinavam a olhos vistos, saboreados na antecipação dos rojões, vinha-d'alhos e lombos arrecadados na salgadeira.

Vinha o António Maneta, homem enxuto de carnes, lépido e aligeirado no andar da vida, senhor de, pelo menos, quatro ofícios, a saber: lavrador, manobrador exímio da carreta funerária, engraxador domingueiro e adestrado matador de porcos.

Estou a vê-lo: de fato azul escuro, camisa domingueira, bigode farfalhudo e gravata escura a rigor, no campo do sagrado silêncio. Movia-se lesto entre filas de mármore, buxo estatuetas de santos e jarros ornados a esmero, floridos na saudade que os vivos tributam com doçura aos seus finados.

Engraxador aos fins de semana, adestrado matador de porcos, sempre que o meu pai lhe solicitava, munia-se do seu facalhão, fincava destro e certeiro o pobre do bicho. Num repente o animal surgia vertical e pendente do chambaril, com um fio de sangue coalhado no focinho.

Nesse tal domingo, na dita tasca onde os homens consumiam a tarde a bebericar entre tremoços, pevides, alarido e comoção do relato da bola, o tal figurão decidira-se pelo malfadado ofício de engajador de almas mitificadas no sonho francês, urdido e tecido nos penosos salários da época.

Exímio e sagacíssimo meliante na sua juventude, mais temido que respeitado, aparentemente regenerara-se, abrindo uma barbearia. Mais tarde, vagamundeara pelas Franças e Araganças, sucumbindo, segundo se constou, vítima da sua audácia, em condições deveras trágicas.

Habilmente, convencera meu pai, com a sua finória e refinada lábia de malabarista dos incautos, que o meu futuro residia além Pirinéus.

Aproveitando a vinda a Portugal para levar um sobrinho de "assalto" — felizmente vivo e são na terra Ílhava — testemunha ocular desta e outras peripécias, eu serviria de muleta no financiamento da aventura pirinaica.

Meu pai, impregnado na sua boa fé de salvar o filho dos horrores da guerra, crente que lhe daria os utensílios celestiais da salvação francesa, desembolsaria cinco lustrosas notinhas de mil escudos, equivalente ao salário de três meses de um bem instalado funcionário público da época.

Sobre uma mesa quadrada de mármore, com uma tolha de linho pintalgada a pontinhos vermelhos e farinha poalhada das padas de Vale de Ílhavo, uma bilha de barro rústica e tosca debruada a listas azuis — ainda existente — amendoins, tremoços, pevides e dois copos do vinho tinto, seria gizado o meu destino.

De uma penada, eu escapulia-me aos tentáculos da guerra, amealhando rendoso pé de meia no recém_mítico eldorado francês.

Brampton, Setembro 2005


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