por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



terça-feira, 26 de novembro de 2024

Noite de Núpcias - (para o Tio Dinô, in memoriam)

Dr. Demóstenes Ribeiro (*)

Sertão, oh meu eterno sertão, quanto mais a gente se afasta, mais eu estou com você. E comigo, Batista e Dasdores, lá nos anos cinquenta, lembro como se fosse hoje e eles nunca sairão de mim.

Na serra da mãozinha, eram posseiros felizes do coronel João Renato, até chegar mais uma seca trazendo sofrimento e aflição. Quando essa chegou, Dasdores se alistou numa frente de serviço e Batista foi pro Maranhão.

Órfão de pai, deixou a mãe e a irmã, e certamente ganharia dinheiro nas plantações de arroz. Venceu a malária, mas a saudade o trouxe de volta. A seca findou e ele, forte e solitário, recomeçou a vida de posseiro trabalhando como um leão.

Um dia a sua mãe faleceu e ele se tornou um solteirão convicto, vivendo pro trabalho e pra Zezinha, a irmã deficiente mental. Ela nunca aprendeu a ler nem a escrever. Passava os dias brincando com bonecas de pano, rezando e pensando no céu.

E Dasdores, também solteira, era uma mulher diferente. Sem mãe desde a infância, vivia sozinha com o pai paralítico e que morreu tempos depois. Muito alta, tinha um gênio forte e braços musculosos. Parecia pouco feminina quando montava a cavalo.

Naquela época, foi a única mulher da região a usar calça comprida e, passada a seca e sem a frente de serviço, dedicou-se com afinco à plantação de milho, mandioca e feijão. Também criava porcos e ovelhas. Tudo de meia com o coronel João Renato.

Embora morando próximos desde a infância, Dasdores e Batista eram estranhos um ao outro, a vida inteira quase não se falaram. Mas, quando veio o cultivo do algodão, percebendo interesses comuns, eles aos poucos se aproximaram. Entre julho e setembro, dividiam burros e jumentos no transporte do “ouro branco” até a usina de beneficiamento na cidade.

E assim, melhorando de vida, entre eles surgiu um ar diferente. As suas palavras tímidas agora se acompanhavam de um brilho inusitado no olhar. Aos quarenta anos usaram anel de noivado e até o padre ficou surpreso quando decidiram se casar.

Aconteceu num final de tarde de setembro e o mundo estava feliz. Foram padrinhos os casais João Renato e Jesualdo – um irmão do coronel. O noivo, de sapato novo, vestia calça de brim azul e camisa manga comprida, bem branca como o algodão. Dasdores de rosa e cetim, jamais pareceu tão mulher. E Zezinha, em chita estampada, rindo muito, trazia nas mãos um buquê de flor de algodão.

Depois de café e bolo, na noite enluarada a rural wilis do coronel os levou de volta. Na casa de reboco, estavam na parede gravuras do Coração de Jesus e de São João. Após algum tempo, todos foram dormir e apagou-se o lampião petromax.

Quase meia noite, após mil rangidos e tentativas na cama patente e no colchão de junco, Dasdores desesperou-se e falou: “ home bote na doida !” Então, detrás da porta, subitamente surgiu um vulto e ouviu-se um grito na escuridão: “em mim, não, em mim não Era Zezinha, que saiu correndo pelo terreiro afora.

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(*) Dr. Demóstenes Ribeiro é médico cardiologista, natural de Missão Velha e atualmente radicado em Fortaleza-CE

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