SENHORES,
Por entendermos ser um texto por demais atual e relevante, transcrevemos.
Apesar de longo, vale muito a pena ir até o final, a fim que entendamos o que estamos enfrentando.
Como surge um novo vírus?
Publicado em 8 de maio de 2020
Em meio a atual
pandemia da Covid-19, cresce o número de pessoas
interessadas em saber como surge um novo vírus ou de
onde vem uma nova doença. Muitas vezes, essas perguntas
dão origem a várias teorias da conspiração rapidamente disseminadas
pelas redes sociais. A hipótese de que o vírus tenha sido gerado
em laboratório é um exemplo, e já foi negada em um trabalho
feito por cientistas dos Estados Unidos, Reino Unido e Austrália [1].
Indo na direção
contrária, apresentamos neste texto as principais informações sobre este tema,
trazidas pela história e pela ciência, para que você esteja bem
informado(a) nas conversas que tiver sobre isso.
As epidemias ao longo da história
Logo no início do
livro A peste (1947), Albert Camus (1913-1960)
escreve:
Os flagelos, na
verdade, são uma coisa comum, mas é difícil acreditar neles quando se abatem
sobre nós. Houve no mundo igual número de pestes e de guerras. E contudo as
pestes, como as guerras, encontram sempre as pessoas igualmente desprevenidas.
De fato, há
relatos de epidemias que devastaram populações inteiras desde as épocas mais
longínquas. Para citar somente algumas: em 428 a.C, estima-se que a Peste
de Atenas possa ter matado até um terço dos atenienses, na época
envolvidos com a Guerra do Peloponeso. No século II d.C, foi a vez da Peste
Antonina devastar Roma, vitimando inclusive o imperador Marco Aurélio.
No séc. XIV,
a Peste Negra, uma das mais famosas da história, levou à morte
cerca de um terço da população europeia. No início do séc. XX, a Gripe
Espanhola se alastrou pelo mundo todo, deixando para trás
um número de mortos que, nas estimativas mais pessimistas, teria chegado à
cifra dos 100 milhões – mais do que a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais
juntas.
Hoje estamos
lidando com uma pandemia que teve seu início na cidade de Wuhan, na China, e
que percorreu todos os continentes em menos de 3 meses. Trata-se de uma
epidemia de origem viral, causada por um novo tipo de coronavírus batizado
pelos cientistas como SARS-CoV-2. A doença associada a ele foi nomeada
Covid-19.
É importante
lembrar que nem toda epidemia resulta de um vírus. A Peste Negra e
a tuberculose, por exemplo, foram provocadas por bactérias. Além
disso, desde o século passado, os epidemiologistas trabalham com um conceito de
epidemia que abrange também doenças crônicas não transmissíveis,
como as doenças cardíacas e o câncer.
Mesmo assim, a
lista de epidemias víricas é extensa: das gripes (suínas, aviárias…) à AIDS, da
varíola à dengue e à febre amarela, o assunto demanda a mais cuidadosa atenção
dos cientistas empenhados em evitar o desencadeamento de novas epidemias.
Mas afinal, como surge um novo vírus?
Não se sabe ao
certo como surgiu o primeiro vírus. É possível que tenha se originado de uma
molécula de RNA – como sugere a “Teoria dos Elementos Subcelulares” – ou então
que, através de um longo processo, seres unicelulares tenham perdido várias de
suas estruturas, até o ponto em que se tornaram inteiramente dependentes de
outra célula para sobreviverem.
De todo modo, é
esta a característica principal de um vírus: ele é um parasita
obrigatório, ou seja, sobrevive e se reproduz somente se conseguir
encontrar uma célula hospedeira com a qual possa se ligar. Contudo, isso não
ocorre sempre. Pelo contrário, na maior parte das vezes, um vírus (ou melhor
dizendo, um vírion, que é como se chama a partícula quando ela está fora de
qualquer célula hospedeira) simplesmente desaparece sem nunca se ligar a
ninguém.
Que o vírus
encontre um hospedeiro e consiga sobreviver, se reproduzir e ser transmitido a
outras células e a outros seres, isto é fruto totalmente do acaso. Ou, se
quisermos ser mais precisos, é resultado de um longo processo de seleção
natural.
Pensemos no
seguinte exemplo: em algum momento na história, uma série de mutações levou
ao surgimento de um vírus que conseguiu se ligar às células de um morcego e ali
se reproduzir. A proximidade entre morcegos levou vários deles a serem
infectados por este mesmo vírus e, por muito tempo, a situação continuou
restrita à infecção dos morcegos. Portanto, mesmo que um ser humano entrasse em
contato com os morcegos infectados, nada lhe aconteceria, pois aquele vírus
tinha propriedades que não lhe permitiam parasitar seres como os humanos.
No entanto, assim
como incalculáveis mutações geraram um vírus capaz de infectar morcegos, outros
tantos eventos poderiam ocorrer até que ele sofresse novas mutações que o
tornassem capaz de infectar humanos. Quando isso acontece, ou seja, quando
um vírus de origem animal começa a nos adoecer, dizemos que estamos lidando com
um tipo de doença específico: as doenças zoonóticas.
Zoonoses: de animais para humanos
Especula-se que,
no início do século XX, uma ave contaminada e um homem gripado possam ter se
encontrado com um mesmo porco. O vírus da ave não podia infectar o homem, mas
conseguiu contaminar o porco, um animal que, como se descobriu anos
depois, pode ser infectado por ambos os vírus – os da “gripe humana” e os da
“gripe aviária” também.
É possível que
tenha sido a partir deste encontro triplo que o vírus responsável
pela gripe espanhola surgiu: o Influenza A H1N1, uma recombinação
do vírus da gripe aviária, suína e humana que, como se viu, foi bastante eficaz
em infectar células humanas. Inclusive, se o nome do vírus lhe soa comum,
é porque foi uma variação do mesmo Influenza A H1N1 que tornou a nos
assustar quase um século depois, em 2009, com a pandemia da gripe A (ou gripe
suína, como ela ficou mais conhecida).
Em 2003 foram os morcegos que entraram em evidência, suspeitos de serem o reservatório do vírus de uma nova doença que vinha causando altas taxas de mortalidade por onde passava. Rastreando-se seu local de origem, foi possível chegar à província de Guangdong, no sudeste da China, onde, no final de 2002, algumas pessoas foram internadas com uma pneumonia atípica. Tratava-se da Síndrome Respiratória Aguda Grave (ou, na sigla em inglês, SARS), provocada por um tipo de coronavírus até então desconhecido, batizado como SARS-CoV.
A gripe
espanhola, a SARS e a atual Covid-19 são exemplos daquilo que chamamos de
doenças zoonóticas, isto é, doenças infecciosas cuja transmissão aos seres
humanos se dá, inicialmente, através de um animal. Além das já citadas,
poderíamos lembrar também da AIDS, cujo vírus nos foi legado pelos
chimpanzés da costa oeste africana, e do sarampo, que nos acompanha
desde os tempos mais remotos através de um vírus de origem bovina.
Estima-se que, a
cada 10 doenças infecciosas que acometem os seres humanos, 6 sejam zoonóticas e
que, dentre estas, cerca de 70% sejam provocadas por animais selvagens. Este é
um ponto especialmente caro à China, que tem sua história associada a um – cada
vez mais polêmico – comércio da vida selvagem.
Crocodilos, cobras e morcegos: os
mercados úmidos chineses
Em 2002 os
primeiros pacientes da SARS eram quase todos comerciantes de um mercado úmido
da cidade de Shenzhen, na província de Guangdong. Esse tipo de mercado é
caracterizado, principalmente, por ser um ponto de comércio de dezenas de
espécies de animais selvagens, vendidos vivos ou mortos na hora.
Quando foi
comprovada a ligação entre o coronavírus da SARS e a carne vendida no mercado
de Shenzhen, este foi fechado, e o comércio de animais selvagens foi
temporariamente banido. Bastaram seis meses para tornarem a legalizá-lo.
À época, os
cientistas chineses alertaram que outros coronavírus, como este que dera origem
à SARS, poderiam levar a novas epidemias no futuro. Os mercados úmidos e o
comércio de animais selvagens foram duramente criticados, acusados de
resultarem num grande caldeirão de novas doenças. Como explica Peter Li,
professor associado da Universidade de Houston-Downtown e representante da China
na Humane Society International:
“Os mercados de
vida animal da China se tornaram um berço para doenças. Animais doentes,
morrendo ou feridos durante sua captura e transporte não são comida, mas
perigos à saúde. Os trabalhadores que manipulam, matam e processam os animais
estão vulneráveis a quaisquer vírus através de cortes em suas peles. As
secreções de cobras infectadas podem ser aerossolizadas e inaladas por
trabalhadores e compradores.” [2]
De fato, 17 anos
depois, outro mercado úmido, agora na cidade de Wuhan, seria apontado como
berço do novo coronavírus, o SARS-CoV-2. Novamente, os morcegos são apontados
como os prováveis reservatórios do vírus. Os pangolins, comercializados nesse
mercado, aparecem como possíveis intermediários – ou seja, como aqueles que
teriam mediado a passagem do vírus do morcego até os primeiros humanos
infectados.
Em decorrência
disso, o comércio de animais selvagens foi temporariamente banido em 26 de
janeiro. Com a escalada da doença, no entanto, uma nova legislação foi aprovada,
e no dia 24 de fevereiro o comércio e consumo de animais selvagens criados no
campo ou em cativeiro foram permanentemente banidos. [3]
Importa ressaltar
que o consumo da carne de animais exóticos na China não é um costume que possa
ser generalizado para todo o país. Enquanto em Guangdong 83% das pessoas
afirmavam ter comido algum animal selvagem em 2012, somente 5% dos habitantes
de Pequim podiam dizer o mesmo. No todo, mais da metade dos chineses
concordavam que animais selvagens jamais deveriam ser consumidos. [4]
Por que, então manter o comércio
legalizado por tanto tempo?
Primeiro, pela
importância que alguns animais, como o rinoceronte, têm para a medicina
tradicional chinesa, o que faz dela um importante impulsionador desse
comércio.
Segundo, porque
trata-se de um comércio rentável, que movimenta bastante a economia
chinesa. Atualmente, a China tem 1,3 bilhões de habitantes, o que significa
que, mesmo que seja uma parcela pequena a se engajar neste tipo de comércio,
ainda assim o número total de pessoas envolvidas será enorme – e a pressão para
mantê-lo também.
Terceiro, porque
a história do consumo de carne entre os chineses está arraigada à história
recente da própria China. Durante o regime de Mao
Tse-Tung (1949-1976), era o governo quem controlava a produção alimentar de
todo o país. No entanto, ao final do regime, o país passava por uma grave crise
de abastecimento alimentar, e muitos chineses estavam à beira de morrer pela
fome.
Para resolver a
situação, o sucessor de Mao, Deng Xiaoping (1904-1997), promulgou
diversas políticas que resultaram na liberalização da produção rural e na
legalização da produção privada. Alguns pequenos proprietários passaram
a criar animais exóticos para alimentação própria e, uma vez em que isso
ajudava a alimentar a população, a prática também recebeu apoio governamental.
Assim, os anos
que se seguiram testemunharam um enorme crescimento na criação de animais e o
surgimento de um novo grupo, os “comedores de carne por vingança” –
isto é, aqueles que, ressentidos de toda a fome que haviam passado nos anos
anteriores, começaram a comer carne aos montes, como compensação aos dias de
privação.
Quais os riscos para além da China?
Como já vimos, a
maioria das doenças infecciosas são zoonóticas, e os animais selvagens
desempenham um importante papel dentre elas. Além disso, quase todas as
pandemias recentes foram causadas por algum vírus ou bactéria de origem animal.
Isto nos leva a algumas conclusões simples.
Primeiro,
é tanto maior a chance de emergência de uma nova doença infecciosa quanto
–
· maior for a quantidade de animais vivendo em
extrema proximidade, especialmente se estiverem maltratados, machucados ou
morrendo, como ocorre com os cativeiros;
· maior for a proximidade entre seres humanos e
animais selvagens, como pode ocorrer em zonas de florestas tropicais ou em
atividades como o comércio da vida selvagem.
Para agravar
ainda mais a situação, quanto maior a aglomeração e circulação de pessoas,
maior também a chance de que a nova doença provoque uma pandemia. É por isso
que, a despeito dos importantes progressos da medicina nos últimos séculos, é
cada vez maior a probabilidade de que novas pandemias voltem a balançar o
mundo – e é, também, cada vez mais difícil contê-las antes que se espalhem por
todo o globo.
A modernização nos
traz esta situação paradoxal: dependemos do desenvolvimento tecnológico para
frear o avanço de novas epidemias e diminuir sua letalidade. Por outro lado,
este mesmo processo modernizador nos lega um sistema de produção de alimentos e
de criação de animais que, em todo o mundo, potencializa a probabilidade da
emergência de novas doenças.
Nas cidades, o
ritmo acelerado de vida e as grandes aglomerações urbanas aceleram sua
transmissão local. Por céus, terra e mares, as inúmeras viagens realizadas
diariamente e a possibilidade de darmos a volta ao mundo em até dois
dias ampliam seu alcance a proporções jamais antes vistas.
Notas
[1] The proximal origin of SARS-CoV-2
[2] First Sars,
now the Wuhan coronavirus.
[3] China’s
legislature adopts decision on banning illegal trade, consumption of wildlife
[4] Wildlife
consumption and conservation awareness in China: A long way to go
REFERÊNCIAS
Organização Mundial da Saúde:
epidemiologia básica – Joffre Marcondes de Rezende: as
grandes epidemias da história – Paulo R. S. Stephens; Maria Beatriz S. C. de Oliveira;
Flavia C. Ribeiro; Leila A. D. Carneiro: virologia. – World Animal Protection – Brenda L.
Tesini: Coronavírus e síndromes respiratórias agudas (COVID-19, MERS e
SARS) – Natasha Daly: Chinese citizens
push to abolish wildlife trade as coronavirus persists – Global hotspots and correlates of emerging zoonotic
diseases – Reuters: ‘Animals live for man’:
China’s appetite for wildlife likely to survive virus – Sanarmed: síndrome
respiratória aguda grave (SARS) | Ligas – Neidimila Aparecida Silveira
Oliveira; Aparecida Mari Iguti: o vírus Influenza H1N1 e os trabalhadores da
suinocultura: uma revisão – Prof. Dr. Paulo Michel Roehe: curso de virologia
básica – World Economic Forum: A visual
history of pandemics
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