Perfume de Gardênia - Dr. Demóstenes Ribeiro (Cardiologista)
No avião, mais uma vez, lembrei de tudo. A casa e o jardim. A minha
mãe trazendo a comida caseira, o meu pai - à cabeceira da mesa - e
os oito filhos sentados na posição de sempre. Naquela época era
assim. Ao anoitecer, o velho na cadeira de balanço, o cafezinho com
os vizinhos e as conversas repetidas de um dia-a-dia feliz.
Uma vez por ano ele ia a Recife ou a Fortaleza e fazia uma
grande compra para a loja. Numa dessas viagens, trouxe uvas e maçãs,
sabor quase desconhecido para mim. Em outra, uma bola de couro e, em
uma outra, o dicionário com o reino encantado e soberano das
palavras. Contou que no São Luiz, assistiu a “A
Ponte do Rio Kwai,” se comoveu com o sofrimento dos ingleses
e eu nunca mais esqueceria a melodia do filme. Depois, chegou o
grande rádio de pilha e o meu velho sintonizava o Rio de Janeiro.
Era um tempo da “Ave Maria” com o Júlio Louzada, do Repórter
Esso e do Altamiro Carrilho e a sua bandinha.
Havia o Grupo Escolar e antes da aula as crianças cantavam “terra
do sol, do amor, terra da luz...” Na fila, um menino bem arrumado,
com gravata borboleta, destoava dos outros. Era criado por uma tia e
parecia assustado. Anos depois, o Ginásio e o padre severo, o maior
dos benfeitores daquela comunidade.
Na entrada da cidade, a prefeitura imponente e verde. A igreja, a
capela de São Francisco, o cinema, a praça principal e a sombra das
algarobas. O trem, de Fortaleza ao Crato, interrompia brevemente a
tertúlia, mas logo recomeçava a festa. O mundo inteiro era
esperança e alegria: tempo de inocência, juventude e fé.
Mas, quando desembarquei, percebi que tudo mudara. O trânsito
perigoso e a sinalização inadequada. A usina fantasma e o canavial,
quase extinto, não mais ondulando ao vento. E na minha cidade tudo
parecia mal cuidado. A prefeitura em um amarelo ressequido, o grupo
escolar e a estação ferroviária abandonados. Ruas estreitas e
esgotos a céu aberto, mercados desativados e praças
descaracterizadas. Na calçada, sem coragem de entrar, observei a
casa. Sem flores no jardim, ela parecia menor e oprimida, todos
partiram, a sua pintura descascava e não mais havia o menino que ali
morara. As casas também sentem saudades?
Antes da volta, entrei no shopping center. Como em todo lugar,
restaurantes fast-food e lojas de grife com letreiros em inglês.
Antevi um mundo de obesos e a escravidão do cartão de crédito.
Suprema heresia, o templo do consumo e da segregação social, o
dragão da maldade na cidade da fé. Ali, ninguém sabia do “Boi
Mansinho” nem da Beata Mocinha, e nada seria mais
exótico do que um romeiro naquele lugar.
Depois, no avião, curvado à realidade cruel e à impiedade do
tempo, fechei os olhos e escondi as lágrimas. Cantei baixinho
“Perfume de Gardênia,”
adormeci e sonhei com o sol nascendo sobre as moças da Beira Mar.
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