Algum tempo depois do golpe militar, Castelo
Branco visitou aquela cidade. Na
época não havia hotel adequado e ele se hospedou
na casa do promotor, a melhor do lugar. O ambiente era festivo, aos
vencedores dava-se tudo e tudo se solucionava.
Assim, não mais faltaria água e, entre as
homenagens ao marechal, um moderno serviço de abastecimento seria
inaugurado. O prefeito não sabia mais o que fazer para agradar à
nova ordem. Uma solenidade cívica e grande concentração popular
marcariam o apreço do povo pelos salvadores da pátria. Os
estudantes perfilados agitavam bandeirinhas, os sinos badalavam, o
tiro-de-
guerra desfilava, a banda de música tocava e no
palanque se comprimiam as autoridades civis, militares e
eclesiásticas.
Sim, vivíamos outro Brasil e com os novos tempos,
repetiam os oradores, nunca mais faltaria água. E no discurso final,
quando o prefeito dissesse que “graças à revolução, esse
líquido precioso e cristalino não mais faltará nas pias, nos
banheiros e em todos os lares,” Artuliano abriria uma grande
torneira no palanque e a água jorraria aos borbotões, coroando a
festa. Ele, sarará cabeçudo e grandalhão, segurança e faz-tudo do
prefeito, estava ensaiado e confiante.
Mas, quando os alto-falantes ecoaram “esse
líquido precioso...”, os fogos espocaram e a banda tocou mais
forte, a água não apareceu. O prefeito disse, sussurrando,
Artuliano, abre a torneira, e, nada! Mais uma vez, a voz trêmula, e
não veio a água. Então, pálido e suando em bicas, sob o olhar
feroz do ditador, ele gritou desesperado, Artuliano, filho da puta,
abre a torneira, satanás! Aí explodiu a vaia imensa e desmoronou a
farsa.
Ninguém contava com aquilo e da torneira,
completamente aberta, não saiu uma só gota. A vaia foi num
crescendo e mil pedras foram atiradas. Algumas feriram o bispo e por
pouco não atingiram o marechal. As freiras choravam e os
seminaristas não sabiam o que fazer. O juiz sumiu. Ouviu-se abaixo a
ditadura, começou a pancadaria e o corre-corre, a polícia e os
agentes secretos dispersaram a multidão.
Bateram em pessoas humildes e prenderam os
comunistas de sempre, mas não identificaram os culpados. No dia
seguinte acharam pedras e cimento fechando a tubulação. Ao encerrar
o inquérito, concluíram que, apesar do vexame, tudo não passou de
um mal-entendido da política local, fruto de antiga rixa entre
coronéis do interior fiéis aos militares. Na verdade, um grupo de estudantes fez a ação na
tarde anterior e à noite tomou o ônibus. Só depois de chegar ao
Recife, eles souberam do desfecho e comemoraram a operação, às
gargalhadas.
Lindas férias de julho – cerveja, festa, namoro
e a ditadura humilhada por uma
grande vaia. Eram todos adolescentes sonhadores e
ingenuamente não imaginavam a longa noite de terror que aos poucos
se anunciava.
(*) Médico-Cardiologista, natural de Missão
Velha e atualmente morando e exercendo o ofício em Fortaleza.
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