A certeza de nossas posições sempre estará no deslocamento
da história, criando contradições, oxidando verdades, introduzindo novas coordenadas.
Um dos temas jornalísticos mais dramáticos do momento é a tragédia da migração
clandestina africana para a Europa, especialmente no Mediterrâneo.
Na semana um barco com 850 pessoas a bordo naufragou no
estreito da Sicília. O comandante do barco, um Tunisiano, é acusado pelos
passageiros de ter fechado as pessoas que vinham no porão e no estágio inferior
do barco. Aprisionados, eles se afogaram.
Este drama leva nossas posições num sentido, para logo a
seguir mudar de rumo frente a como se manifestam as autoridades europeias.
No primeiro sentido nos posicionamos contra este tipo de
pirataria que carrega a mão-de-obra barata de um continente para outro em
condições tão desumanas quanto os navios negreiros. O artista plástico Bruno
Pedrosa, que vive na Itália, disse-me alguns meses passados que o nível de
desumanidade tinha chegado ao ponto em que os tais agentes punham as pessoas em
pequenos barcos, orientavam o rumo do leme em sentido do continente europeu e
diziam: é por aí. E os barcos, sem piloto, levavam os desesperados de mar a
dentro.
Mas em seguida, mudamos o rumo de nossas posições. A chamada
à responsabilidade dos governos Europeus sobre o assunto representa o que
exatamente? Aumento da vigilância aérea, marítima e por satélites e radares
sobre o mediterrâneo? Ampliação de uma rede de informação secreta nos países
africanos para detectar os movimentos? A rápida devolução dos migrantes? A
perseguição estilo CIA da raia miúda dos contrabandistas de gente?
Afinal vamos tender a ficar contra os piratas e ao mesmo
tempo contra os governos? É contradição tremenda em nossos espíritos (uma
ressalva: na televisão estas coisas só têm um lado e a posição se resume à
condenação dos piratas e, por tabela, dos migrantes). Mas o que efetivamente temos?
Temos um sistema econômico e político desigual. Fazedor de
misérias e supressor de oportunidades. Além desta inerência, é um mundo que
cresce numa velocidade descontrolada como fetiche consumista, onde as pessoas
se tornam peças performáticas e vivem numa eterna incompletude diante das
ofertas inatingíveis.
Segundo análises prospectivas, em 2020 apenas 1% da
população mundial controlará mais riquezas do que 99% da população. Esta
riqueza organizada em redes de influência carregará a história num sentido
mecânico consumista e degradante. Dados da ONU estimam que de cinco pessoas no
ano de 2050, quatro estariam vivendo em regiões com problemas de abastecimento
de água. Isso sem contar com esgotamentos naturais, danos ambientais, desflorestamentos,
poluição dos mares e do ar.
A questão energética será mais crítica do ponto de vista de
sua distribuição do que de sua geração. Quem tem acesso às fotografias da terra
à noite já pode observar, pela iluminação dos países, como esta distribuição é
brutalmente desigual. Este modo de distribuição do lúmen produzido pelo
trabalho humano é o molde plástico ao olhar de como a sociedade
ultra-capitalista atual funciona.
A questão da desgraça no Mediterrâneo é uma questão de
consciência política, de organização e mobilização, refletida com o
conhecimento até agora adquirido pela humanidade para que se possa, com escala
de danos mais reduzida, se transformar e superar o estágio atual do sistema
econômico e político. Existem muitas formulações políticas dedicadas a
compreender os fatos históricos e lhes dar uma condução racional, normalmente
revolucionária.
Não acredito que a dimensão destas contradições possa ser
resolvida pelo consumismo, uma vez que ele mesmo é parte daquelas contradições
anteriormente apontadas (concentração de riquezas, esgotamento da natureza,
desigualdade e conflitos).
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