Por duas vezes, durante boa parte da minha adolescência,
convivi com a certeza que estava condenado, de que iria diretamente para o
inferno, não tinha direito nem a uma pequena parada no purgatório, seria uma
viagem sem escala, direto para o fogo eterno.
A razão disso não era os pecados por ventura cometidos,
esses pecados eram resolvidos nas confissões semanais. O grande problema se
devia a minha incapacidade de compreender alguns mistérios da religião,
principalmente os Dogmas de Fé: A Santíssima Trindade, A virgindade de Maria, Imaculada
conceição de Maria, a Infalibilidade da Igreja etc. São muitos os dogmas, apesar
de ter problemas para compreendê-los, tinha, e ainda tenho, simpatia pelo Dogma
do Juízo Final. Lá tudo será passado a limpo, e me deleitava em imaginar alguns
conhecidos pecadores tentando justificar a São Pedro o que estavam fazendo no
cabaré de Glorinha, após comungarem na missa dominical.
Algumas vezes cobrava a meus pais e tias, ou à nossa
professora de religião uma explicação sobre os dogmas, mas as respostas eram sempre
vagas e repetidas, de que eram Dogmas de Fé e que para ser bom cristão, era
necessário acreditar. Não compreendia como era possível que meus irmãos, primos
e muitos da família, não demonstrassem preocupação a respeito dos dogmas. De
forma que comecei a suspeitar que a incapacidade de compreendê-los era falha
minha, só podia ser castigo, era prova da falta de religiosidade, portanto o
merecido passaporte para o inferno.
Quando criei coragem e expliquei o problema da minha
incapacidade de compreender os dogmas ao padre Frederico, vigário da Paróquia
São Vicente, o qual me batizou e, portanto, me salvou de um dos Dogmas, o do
Pecado Original. Podia confiar no padre, era um dos poucos em quem podia
externar esse tipo de dúvidas. Não brincava, simplesmente disse, para acalmar
meu juízo, que esses eram assuntos complicados e que só seria entendido quando chegasse
na idade adulta, que tivesse paciência, pois Deus estava tomando conta do
assunto. Com o problema entregue a Deus, tive segurança de que, pelos dogmas,
não mais iria para o inferno.
A segunda vez que estive a beira de seguir viagem
diretamente para o inferno, mesmo antes de morrer, foi quando chegou da
Alemanha uma pequena estátua de uma santa muito bonita e que foi instalada em
um dos altares laterais da Igreja São Vicente. Foi paixão instantânea, a santa
com seu manto de pano azul, transmitia muito bondade, meiguice e beleza. Era
admirada por todos, o que me causava preocupação de ciúme. Junto com a paixão,
a paranóia ia aumentando quando cismei de ver as intimidades da santa. Sabia
que dessa vez tinha exagerado, As portas do inferno estavam abertas, faltava
apenas o deslize final, que era levantar a saia da santa. Se assim fizesse,
imediatamente se abriria um buraco e eu seria tragado para as profundezas do
inferno.
Foram meses de dúvida, se olhava ou não as pernas da santa. Até que um
dia, vencido pala curiosidade, conformado que iria para o inferno, o coração
aos pulos e todo suado, criei coragem a levantei o manto da santa. O buraco não
se abriu, e qual não foi minha surpresa e decepção quando vi que não existia
corpo algum, a santa se resumia a uma estrutura de madeira onde foram fixadas a
cabeça e as mãozinhas o resto era completado pelo arranjo do manto. Apesar do
fiasco como voyeur de santa, sentia que tinha cometido um grave pecado, e
deveria ajustar contas me confessando de tamanha falta de respeito. Mais calmo,
depois de alguns dias procurei o padre Frederico e contei toda a história. Ele muito
sério ouviu tudo, levantou-se calmamente, levando junto a minha orelha e disse
que a coisa era grave, que iria pensar e orar, teria comigo uma conversa muito
séria para o dia seguinte. Largou minha orelha e saiu rapidamente da sacristia,
mas ainda deu para ouvir uma sonora gargalhada. Como a tal conversa nunca
houve, deduzi que estava salvo.
Um comentário:
Eita Zé, traz mais histórias assim. Muito divertidas depois que passou o seu inocente aperreio, dá pra gente rir mesmo. E olhe que, como você, muitas e muitas pessoas pecaram e temeram o inferno. Ainda bem que tinha o padre Frederico, né?
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