Vá que as meizinhas de
nossas rezadeiras, os chás de nossas avós, os rituais dos xamãs não se
enquadrassem no script exato da racionalidade e da pesquisa científica cujas
dúvidas e assertivas a maioria segue. Mesmo assim seja por rejeição ao modelo
comercial vigente, seja por acreditar mais nas coisas naturais do que
industrializadas ou seja pela profunda umbilicação com o tempo da cultura, a
verdade é que muita gente aceita as curas tradicionais.
Em parte há uma
desconfiança bastante razoável com as práticas enganadoras, de fetiche da
mercadoria, da promessa da panaceia entre médicos e laboratórios, entre
profissionais de saúde e a estratégia de “vender mais e melhor o seu peixe”. A
febril mercantilização da saúde se tornou na patologia e na insanidade
subjacente e ameaçadora a requerer mais e mais gastos diretamente do bolso das
pessoas.
Revistas, programas de
televisão, especialmente no horário das famílias, seja de manhã para atingir as
mulheres em casa ou aos domingos no Fantástico, vivem de apresentar “estilos”,
“técnicas”, “medidas”, “necessidades” de coisas novas e desconhecidas sem as
quais não haverá amanhã para ninguém. É uma prática enganosa, irresponsável e
sem validação externa que garanta a responsabilidade científica de tudo isso.
Mas conseguem o efeito: gera uma demanda permanente nas famílias.
E pensei nisso tudo ao
atravessar de barco a distância entre a ilha de Chiloé e o Continente numa
região ao sul do Chile. E pensei não apenas com a dinâmica intelectual. Pensei
por intenso estímulo olfativo. Um fedor de carnes apodrecidas, com olores de
animal oriundo do mar que se expandia por todo o ambiente do barco e penetrava
o carro, apesar dos seus vidros fechados.
Fedia como fedeu o
e-mail que uma colega médica recebeu de outra profissional. Esta última enviou
um e-mail indignada para um conjunto de colegas com uma reclamação que torna
grave a mercantilização da medicina no Brasil. E olhem que o mal cheiro no
barco da travessia vinha de uma grande carreta com enorme carroceria em forma
de baú. O caminhão ficava um pouco depois do nosso carro. Era um caminhão
perfeitamente legal, destes que rodam todas as estradas do mundo levando
mercadoria de um para outro lugar.
Ao ler o e-mail daquela
colega, minha amiga viu estarrecida que aquela denunciava a ameaça que tinha
recebido de um representante de laboratório que dizia o seguinte: a nossa
auditoria interna identificou que a senhora não tem prescrito o nosso
medicamento e que, ao contrário, tem feito escolhas pelo medicamento do nosso
concorrente. Isso não fica bem pois acabamos de oferecer um cruzeiro marítimo
para a senhora.
Imediatamente me veio a
comparação entre a carga podre daquele caminhão em Chiloé na travessia do
Catamarã e o Transatlântico carregado de médicos às expensas de um laboratório.
Tudo transpirava o mesmo odor, e a médica havia suspeitado daquilo tudo. Ela
era matéria prima para o lucro da Indústria Farmacêutica. E mais revelador
ainda, com uma suspeita digna de um Snowden: como a empresa tomara conhecimento
da prescrição da médica? Teria controle das farmácias ou das informações
geradas pelas receitas controladas para a Vigilância Sanitária?
E tudo poderia se
voltar ao Xamã quando ele ainda não fora aprisionado ao “mercado” como aqueles
panfletos que vendem a “Madame” que traz o namorado de volta. Acontece que o
Congressos dos profissionais de saúde são máquinas dos laboratórios e da
indústria de equipamentos. Não são congressos científicos, são feiras para
vender produtos. Assim como as ofertas para ouvir de graça um grande
especialista pago pelo laboratório e logo em seguida um bom jantar num caro
lugar.
O caminhão que fedia na
travessia entre Chiloé e o Continente estava com carga plena de vísceras de
salmão. As vísceras iriam para uma indústria multinacional que alguns meses
depois estaria com seu produto devidamente embalado e tornado atraente nas
prateleiras das farmácias do Brasil. Assim como os profissionais de saúde que
se imaginam dominando o processo do seu conhecimento.
Logo de manhã
despeja-se na palma da mão para que possa ser enviado diretamente à boca e em
seguida deglutido com um copo de água. Aquela capsula dourada do óleo de
salmão. O óleo do peixe das águas frias: criado em cativeiro, comendo ração e
enganado para ovular.
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