O padre Adalmiram Vasconcelos, pároco de Farias Brito, vem
sendo seguidamente imputado de polêmico pela população caririense. Conheci-o ,
recém ordenado, ainda como capelão do Hospital São Francisco , e sempre me
pareceu um religioso aberto, cordato e tranqüilo. Em 2010, ele trabalhando em Santana do Cariri , tomara
medidas firmes no que tange à festa da padroeira daquela cidade que vinha
tomando formato de um “Carnaval fora de época”. Blocos, trios elétricos,
camisetas com alusões indecorosas e incentivo maciço às libações alcoólicas. Na
época, com ajuda do prefeito e Ministério Público, criou regras e condutas na
tentativa de imprimir um sentido mais cristão à festa religiosa. Sofreu , em represária,
perseguições de grupos jovens locais,
disseminando-se o boato de que, à noite, o nosso pároco uivava à lua e
virava lobisomem. Em 2011, o padre assumiu a paróquia de Nossa Senhora da
Conceição em Farias Brito. Em setembro do ano passado , solicitou aos fiéis da
Serra do Quincuncá para não soltarem fogos de artifícios na missa em sufrágio
da alma de Padre Cícero. Adelmiram acreditava que haviam sido os fogos que
causaram um incêndio que terminou por devastar mais de dez quilometros da
serra, com grave impacto ecológico. A população afeita ao fogaréu e ao pipoco ,
não viu com bons olhos a medida. Agora, por fim, explode uma outra polêmica. Aberta
a Festa de Santo Antonio em Cariutaba, o sacerdote recorreu aos serviços do
Ibama e da polícia para impedir o corte de uma árvore gigantesca , feito
anualmente, desde o Século XIX, para se usar como pau da bandeira. Fincou a
bandeira do santo casamenteiro na torre da igreja. Proibiu ainda o consumo
exagerado de bebidas . As festividades vêm acontecendo do lado de fora do
templo: por medida de segurança, Adelmiram mandou passar um cadeado na capela. A
revolta dos moradores, num local
tradicionalmente sem muitas atrações, parece visível e perturbadora.
À
luz da razão , é difícil confrontar as medidas saneadoras e corajosas do nosso
padre. É um verdadeiro absurdo se cortar, anualmente, uma árvore antiga, com o
fito único de se montar um suporte de bandeira. Essa medida, amigos, fere não
só princípios ecológicos, mas também legais. Sem falar no contra-senso que é uma
religião que deve defender intransigentemente a preservação da vida nas suas
mais diversas formas, servir de instrumento para a destruição. Que pensaria
disso São Francisco de Assis ? Por que não mantemos a mesma tradição ,
utilizando sempre o mesmo mastro ? Por outro lado, que têm de sagradas as
nossas festas religiosas? As estatísticas de violência na Semana Santa são,
historicamente, muito mais catastróficas
de que as do Carnaval. Há shows nababescos
toda Sexta Feira Santa em Gravatá,
Pernambuco, regados a droga, sexo e Rock´n Roll. A Festa do pau da Bandeira de
Barbalha é similar aos rituais de fertilidade
pagãos, com seu símbolo fálico reverenciado em cada esquina. As festividades da
Baixa Rasa ,aqui em Crato, não juntariam
tanta gente sem a música, o aguardente e a paquera, ingredientes básicos de
qualquer solenidade profana que se preze. Padre Adalmiram traz consigo esta
pureza quase missionária, remontando às raízes do Cristianismo. Com coragem,
cumpre a responsabilidade que se espera de um pastor : ver adiante, perceber
novos caminhos por trás das lentes embotadas da aparente normalidade cotidiana.
Nada, no entanto, contra a corrente, será massacrado pela população, pela
política e mesmo seus pares não compreenderão sua Cruzada.
O
Sagrado e o Profano sempre estiveram umbilicalmente ligados em todas as nossas
comemorações sacras. Talvez os brasileiros, por natureza, não sejam muito
afeitos aos liames dos ritos. Pela nossa própria colonização, nossa religião é,
também, profundamente miscigenada. Comungamos na igreja, mas freqüentamos o
Centro Espírita, vez ou outra comparecemos ao Terreiro, acreditamos em
reencarnação, usamos umas folhinhas de arruda , alguma figa, somos fatalistas,
não comemos carne de porco e por aí vai. Nas festividades religiosas
rapidamente entra um atabaque, um violãozinho, uma sanfona , que puxa uma
caipirinha. Rapidamente os cultos ultrapassam as fronteiras do sagrado. Por
outro lado, as cidades tomam as festas como suas( o turismo é politicamente
cada vez mais atraente e uma fonte de renda importante), entram nas agendas
turísticas dos municípios , parte-se para divulgação, procuram-se atrações de
massa como isca e, de repente, a festa é festa e não mais culto. As entidades
religiosas, por sua vez, pragmáticas, beneficiando-se com o aumento da
arrecadação , fecham os olhos para o crescimento absurdo do profano,
afinal no Brasil tudo sempre acaba em
festa.
Acredito,
no entanto, que não podemos apenas , simploriamente, lançar no povo brasileiro
a culpa pela propensão natural à esbórnia. O Cristianismo , estrategicamente, colocou sua
festas principais na mesma data das antigas festas pagãs, no sentido de
esvaziá-las. Os festins são todos retratos vivos de velhas encenações e
iniciações de ritos pagãos. O Natal ( até hoje não sabemos a data do nascimento
de Cristo) foi alocado em 25 de Dezembro,
exatamente na antiga Saturnália , a grande festa romana que comemorava o
solstício de inverno. A Páscoa, com seu coelhinho, seu chocolate e seus ovos,
remontam ao culto da Deusa Ostera, símbolo da fertilidade e do renascimento na
Mitologia anglo-saxônica. As comemorações dos nossos dias santos não passam, na
verdade, de adaptações aos rituais às deusas primitivas, reverenciadas na época
das plantações e cultivos dos alimentos. Deve ter se sedimentado no nosso
inconsciente coletivo que não se pode venerar Zeus, sem acender também uma vela para Vênus, para Baco e Dionísio.
Possivelmente
as árvores continuaram sendo tombadas; as bandas de forró seguirão fazendo a
trilha sonora das festas religiosas; os tonéis de aguardente persistirão na sua tradição de regar as
preces. Apesar das nuvens, a lua permanecerá cheia. Adelmiram sabe disso e –
mesmo sem sê-lo-- faz aquilo que se
espera de um lobisomem : uivar !
J. Flávio Vieira
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