“Tudo depende do tempo e do acaso”
Eclesiastes
Há
exatos dez anos, silenciava a pena de um dos mais prolíficos e brilhantes
escritores cearenses: O Padre Antonio Vieira. Nascido na pequenina Lagoa dos
Órfãos, em Várzea Alegre, Vieira dizia-se filho sentimental e intelectual da
Cidade de Frei Carlos. Deixou quase trinta livros publicados, dentre eles “O
Jumento, Nosso Irmão” , reconhecido internacionalmente, publicado numa versão
inglesa e tido como a mais
impressionante e completa obra já escrita sobre o nosso querido Jerico. Sua produção fluía de uma
extraordinária erudição que avançava pelos campos da Literatura, da Sociologia,
da Filosofia, do Direito, da Antropologia, da História, da Gramática, da
Política, da Religião. Vieira era um poliglota, um orador inspiradíssimo e dono
de um estilo único e inconfundível. Mesclava, com rara destreza, a poesia e o
humor e fez-se um incansável engenho de
produção literária. Como professor (de incontáveis línguas e matérias) tinha o
poder quase único de hipnotizar platéias e transferir a portentosa sabedoria
acumulada por tantos e tantos anos, com uma leveza e didática difíceis de se
encontrar nos atuais mercados educacionais.
Mais
que um escritor, o Padre Vieira era um Artista. Estava profundamente antenado
com o seu tempo. Conseguia ver bem além dos filtros religiosos e morais que a
sociedade nos vai impingindo, pouco a pouco, na busca de empalhar-nos com
verdades prontas e receitas pré-fabricadas. Franzino, feio e aparentemente
frágil, Vieira carregava uma força de um guerreiro espartano. Eleito deputado
federal em plena Ditadura Militar, insurgiu-se, bravamente, contra o golpe de
64, contra a Censura e a Tortura. Seus pronunciamentos no Congresso possuíam uma
contundência inimaginável num regime de exceção. Por isso mesmo, terminou
cassado nas primeiras lufadas do AI-5. Numa época , amigos, em que tantos e
tantos se acumpliciaram com a ditadura e outros tantos fizeram-se de Judas e
entregaram estudantes, sindicalistas e políticos tidos como subversivos aos leões famintos da
arena pátria; Vieira, como artista, teve
a clarividência de reconhecer quem eram os mocinhos e os bandidos e,
corajosamente, alistou-se com os que pugnavam pelo bom combate. Não foi menos
corajoso ao insurgir-se contra algumas leis pétreas da igreja de que fazia
parte. Postou-se contra o celibato clerical, contra o medievalismo crônico de
algumas teses imutáveis, contra o preconceito de gênero nas suas hostes, contra
a hierarquia mais burocrática e menos pastoral. Hoje, quando as mudanças nas
estruturas arcaicas parecem mais que
imperiosas, o tempo demonstrou , claramente, que o Padre Vieira trilhava, mais
uma vez, o caminho da luz.
O
legado de um escritor insre-se nas páginas que escreveu. A herança de um
artista, no entanto, ultrapassa as fronteiras da sua obra. Em que contribuímos,
com nossa Arte, para transformar esse
mundo num lugar mais bonito, mais justo, mais feliz, mais alegre ? Acredito que
Vieira buscou, desesperadamente, legar um planeta mais igualitário , mais
franco e mais risonho para a posteridade. Reclamava de ter sido tolhido como
ser humano, na impossibilidade de gerar descendência, mas deixou quase trinta
filhos, na forma de livros. Espalhados pelo Brasil, necessitam de
reedições para que cheguem às novas gerações e continuem o seu poder
transformador.
Passados
dez anos, chega o tempo em que um artista tão importante precisa sair do
purgatório da nossa história. O Cariri e o Ceará precisam saudar essa dívida
para com um dos seus mais expressivos artistas. Tudo nessa vida, como diz o
Eclesiastes, depende do tempo e do acaso, mas bem que podíamos dar um
empurrãozinho a estas duas forças motrizes da humanidade.
J. Flávio Vieira
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