por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 22 de março de 2013

Catecismo



Quando do ajuntamento dos   “Apontamentos para a história mítico-sentimental  de Matozinho”, que terminaram publicados em 2007, notamos uma pasta vermelha à parte, separada cuidadosamente no meio dos manuscritos, etiquetada com letras garrafais : “Cuidado!” No processo de pesquisa,  terminamos por abri-la, não sem algum receio,  e encontramos no interior a razão pela qual o colecionador as havia reservado. Tratavam-se de histórias apimentadas da vila, puxadas para o erótico e o fescenino  e, certamente, meu velho tio as isolou, temendo identificarem-se alguns dos personagens e, também, resguardando um certo pudor: poderiam cair nas mãos de moiçolas púberes, de crianças ou ferir sensibilidades moralistas e religiosas. Aquilo parecia quadrinhos de Carlos Zéfiro !  O certo é que o receio do meu tio contaminou-me e, no processo de seleção dos textos do “Matozinho vai  à Guerra”, preferi manter o pundonor do meu parente e deixei a pasta vermelha intocada. Os anos passaram-se e, pouco a pouco, fui percebendo que  já não existiam razões para tanto pejo. O BBB jogou no ventilador toda a intimidade da alcova, as novelas escancararam o último reduto da decência, os adolescentes produzem seus próprios vídeos pornôs e expõem no You Tube. A pasta vermelha, hoje, parece até um catecismo, pode ser publicada até em livrinhos de missa de sétimo dia.
                                               Recentemente, reabri a pasta vermelha , reli alguns textos e resolvi publicar alguns que me pareceram mais picantes. Em dias de hoje, sei que não existe mais o perigo de o leitor degustá-los e comungar em seguida. Não há mais o risco de a hóstia sagrada ferver na língua como um sonrisal. Pois aí vai a primeira dessas histórias.
                                               Ah,  os homens ! Eternos atores no palco dessa vida! Põem máscaras, vestem-se de ricos figurinos e encenam continuamente aquele papel que os tornam mais reconhecidos e admirados pela platéia: o de Rico, bonito, inteligente, compreensivo,  valente, bondoso, caridoso, virtuoso, santo !  Durante toda existência,  buscam, incansavelmente, aperfeiçoar este personagem perfeito que aqui e ali termina por mostrar outras facetas e arestas bem menos admiráveis. Só existem dois lugares em que a máscara cai, a maquiagem é removida e as fraquezas e deformidades aparecem sem a magia do palco : o Bar e o Cabaré. Aí o homem é apenas o homem, com seus anjos e demônios bem aparentes. O Bar e o Cabaré são o camarim da cidade !  Assim, as cafetinas  e as putas conhecem como ninguém a alma de uma vila. Têm a perfeita dimensão de onde começa e termina a santidade de cada um de nós; conhecem as mínimas fraquezas, taras e deformidades  dos habitantes ; preenchem com  amor   o vazio de tantas solidões. Claro que com um amor negociado, mas existe alguma coisa sem preço e código de barras numa sociedade de consumo ?  O velho “Boca Boa” ,em Matozinho,  já havia chegado à conclusão que o amor é puro devaneio. Chegue eu – diz ele—com cinqüenta reais na Rua do Caneco Amassado ! Sou tratado como rei, vou ser amado e idolatrado !  Agora vá eu liso, como muçum ensaboado ! O amor existe sim, mas é tabelado, meu senhor !
                                               Existem, no entanto, interpretações diferentes sobre a teoria do nosso “Boca Boa” . No governo de Sarney, talvez os mais novos não lembrem, mas o preço dos produtos foi tabelado.  Quebrando todas as regras da economia, não era permitido majorar o preço de qualquer item, sob pena de prisão. Como era de se esperar, os víveres desapareceram das prateleiras e começou a se estabelecer um mercado paralelo, misterioso,  baseado na eterna lei da oferta e da procura. Em Matozinho, os magarefes começaram a aumentar o preço da carne. Houve denúncia, a polícia se mobilizou, invadiu o mercado municipal e prendeu os insubordinados. Estabeleceu-se a maior algazarra, já fora do prédio, com os soldados algemando os revoltosos e metade da população observando e comentando. Nisso, atiçada pelo barulho, “Das Virgens”, uma das mais tradicionais quengas da Vila, chegou em meio à balbúrdia, buscando informações sobre o que estava acontecendo.
                                               --- Que putaria é essa? O que diabos tá acontecendo ?
                                               Uma das suas pariceiras ,que estava no meio da multidão, explicou :
                                               --- É a polícia que está prendendo os magarefes !
                                               --- Oxente! Mas por que ?  Cons seiscentos ! E que diabos foi que eles fizeram? – Quis saber Das Virgens .
                                               --- Eles aumentaram o preço da carne e num pode!  A carne tá tabelada !
                                               Das Virgens, surpresa, saltou um suspiro de alívio e comentou alto como se estivesse numa difusora :
                                               --- Ave Maria ! Ainda bem  que priquito num tá tabelado, meu deuso !
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                                               Gumercindo Carabina trabalhava como vendedor numa loja de confecções em Matozinho, chamada de “Cambraia de Linho”. Gugu  , como era conhecido pela gandaia, era casado, tinha uns dez filhos, mas era viciado num Cabaré. Escapava para lá sempre no horário de almoço que não dava tanto na vista. À noite estava sempre com a família, como um fiel e exemplar cidadão!  Gugu tornou-se freguês preferencial de um cabarezinho na Rua do  Amassado, naquele último lugar para onde acorriam as putas já idosas e sem fama e que se conhecia pelo nome de “Farinhada”. A intimidade era tanta com “Santinha”, a sua predileta, que ele pagava por mês, como se fora o aluguel de um imóvel. Um dia, em plena hiperinflação em fins do Governo Sarney, após terminar a transa com Santinha, Gumercindo se arrumava para voltar ao expediente da tarde no “Cambraia”, quando foi despertado por ela da terrível situação econômica do país:
                                               --- Ei, Gugu ! Tu vem amanhã ? Num se esqueça , não, viu ? Cu subiu !
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                                               O velho Sinfrônio Arnaud gostava de freqüentar o Bar conhecido por “Pentelho de Ouro” , na mais mal afamada rua de Matozinho. Arnaud freqüentava por pura mania, gostava do ambiente, das conversas e da proximidade das meninas de difícil vida fácil. Já não tinha idade para maiores danações e libações eróticas, mas restara nele aquela mania, aquele clima despojado do  lupanar. Um dia, entre uma e outra dose de pinga, ouviu uma confusão danada na rua. Vinha das bandas da “Farinhada”. Deixou o copo no balcão, por um momento, e saiu à porta para testemunhar o arranca-rabo. Viu, então, Jojó Fubuia, no meio da rua, tentando correr, ainda assungando as calças e, logo atrás, uma quenga robusta, com uma trave da porta na mão, sentando a pua no pobre do Fubuia. Sinfrônio ficou penalizado com a situação do mais famoso deodato da vila.  O que teria acontecido ? A confusão veio de lá, na direção de Arnaud, o pau comendo no centro : a quenga como um carcará atrás do pau d´água, a trave voando solta, Jojó tentando escapar como podia. Ao passar , por fim, pelo bar, a puta parou um pouco e explicou, por fim, as razões mais que justas para a surra :
                                               --- Coronel, veja se eu não tenho razão  ! O senhor já ouviu falar, em algum lugar do mundo,  em cu fiado ? Já ?

                                               Cunegundes Pé-de-Pato  veio a Matozinho, na intenção de fazer um empréstimo agrícola.  Ano eleitoral, antes do período invernoso, o Banco do Brasil montara um pequeno posto temporário para ajudar , segundo divulgavam os políticos, os agricultores. Cunegundes já tinha mandado um mundão de documentos e viera naquele dia,  pois havia a promessa da liberação da verba. Enfrentou uma fila danada, depois um chá de cadeira de mais de duas horas e, finalmente, botou a mão na bufunfa. Não era muito, uns quinhentos cruzados, dava para comprar, talvez, umas duas vaquinhas. Dinheiro no bolso, pensou em voltar para Bertioga, mas já não havia, àquela hora,  sopas disponíveis. Dirigiu-se , então, à Loja “Cambraia de Ouro” e procurou seu amigo Gumercindo. Explicou-lhe a pendência e perguntou-lhe onde poderia pernoitar . Gugu, como era de se esperar, deu-lhe uma idéia genial: O Cabaré de Maria Justa, o mais requintado de Matozinho. Cunegundes  gostou da dica e partiu para lá. Estabulou conversa com uma das meninas, uma loirinha bonita, reboculosa, perna grossa e bunda tanajúrica. Conversa vai, conversa vem, após umas doses ,uma dancinha bochecha com bochecha e uns entrelaçados dos pés de pato de Cunegundes com os troncos de aroeira da loirinha, terminaram na noite de núpcias. Pela manhã, acordou um Cunegundes feliz e realizado. Arrumou-se e, depois, lembrou que cometera um erro primal: não havia acertado o preço previamente , coisa quase impossível de acontecer com os atilados bertioguenses. Cunegundes, então, algo temeroso, pediu a conta :
                                               --- Foi muito bom ! Quanto tô devendo, meu bem ?
                                               A loirinha, ainda deitada, refazendo-se um pouco sob os lençóis, respondeu-lhe com voz sensual como locutora de aeroporto:
                                               --- Cuné , eu cobro trezentos cruzados ! Mas para você, que é um freguês tão bom e  parece um  jumento fogoso na cama, vou cobrar só duzentos e cinqüenta, tá bom?
                                               Pé-de-Pato não pode conter a surpresa! Lá se ia metade do seu empréstimo, só numa noite. Conteve-se um pouco, mas soltou :
                                               --- Duzentos e cinqüenta, mas não tá muito caro não, minha filha ?
                                               A loirinha, não se enrolou:
                                               ---- Cunezinho, tá tudo pela hora da morte ! Agora mesmo a gasolina subiu!
                                               Cunegundes meteu a mão no bolso, contou as cédulas com uma pena danada e pôs em cima da camareira. Quando abriu a porta para sair, a loirinha, feliz, perguntou interessada:
                                               --- Filhinho e agora quando você volta ? Quando te vejo de novo ? Já tô morrendo de saudade !
                                               Pé-de-Pato fechou a porta lentamente, enquanto mandava-lhe a resposta:
                                               --- Desse preço não dá ! Só volto agora quando você botar um priquito a óleo ou a gás butano !

J. Flávio Vieira

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