Quando ao cego se deu a luz, bilhões de coisas visíveis se
apresentaram aos outros sentidos que já as sentiam, de outro modo e nem sempre
das longas distâncias em que a vista alcança e outros sentidos não. Mas é desta
liberdade de ir cada vez mais longe que a luz se perde, sai do foco, se torna
uma mancha sem significado.
E o fabuloso reino de Portugal, das epopeias dos Lusíadas,
tão de vanguarda e livre para ir cada vez mais longe e tantas terras conquistar
que terminou sendo conquistado. A aventura de Dom Sebastião e seu tropeço de
Alcácer-Quibir encantou os sonhos de liberdade dos portugueses e a coroa
espanhola fez de Portugal quase uma província.
Mais de quarenta anos após, em 1640, houve a restauração do
reino com a dinastia bragantina. As guerras da restauração duraram mais de
vinte anos e esta história acontece no clima. Neste mesmo período Richelieu
controlava o reino francês, os reinos europeus viviam a guerra dos trinta anos
e a Inglaterra passou pela revolução puritana que foi a primeira grande
revolução da burguesia no mundo.
No tal ano de 1640 nasceu na cidade de Beja em Portugal uma
jovem de família abastada, sujeita a lei dos vínculos em que os filhos mais
velhos recebiam a integridade do patrimônio familiar para que esse não se
dividisse, restando aos irmãos mais jovens a dependência, a aventura, o serviço
militar ou os conventos. Aos onze anos a menina é entregue num convento na
cidade de Beja onde nascera e aí se torna madre. Com o tempo se torna escrivã
do convento.
A restauração portuguesa, como dito, foi no clima geral das
guerras europeias de modo que até oficiais holandeses e franceses foram parte
dela em pleno território lusitano. Entre os comandantes de guerra esteve o
Conde Noel de Chamilly. A freira tinha vinte e poucos anos e ambos se encontram
através dos membros da família dela.
Três anos após ter estado em Portugal, Chamilly retorna à
França e dois anos passados sai publicado em Paris as “Lettres Portugaises
traduite em François” por Claude Barbin. Eram cinco cartas sobre um grande amor
envolvendo Chamilly e uma freira portuguesa. As cartas foram escritas por ela.
E aí se montou uma narrativa semelhante à veracidade sobre a
existência ou não de Shakespeare. Estamos falando de Mariana Alcoforado. A
freira suposta autora das cartas traduzidas para o francês se tornou um grande e
contraditório diálogo literário e biográfico.
Adotando os dois temas falaram dela Camilo Castelo Branco, Rousseau,
Saint Simon, Stendhal, Rilke entre muitos. Mas o que se tem é uma grande
escrita literária em cinco cartas apenas. Reflexo de uma época de grandes
paixões, de profunda lealdade ao ser em si, mas também da ambiguidade entre
duas profundidades de se perder: a dubiedade do amor de um ser humano por outro
e ao mesmo tempo do amor universal representado pela divindade.
Ambas as profundidades apontam o indestrutível, o eterno e
contraditório ao desgaste, a metafísica do amor, o amor como a extração da
essência e a semente permanente da lealdade a um só.
E nisso as cartas da Madre Mariana Alcoforado são uma grande
luta de contrários já com as sínteses extraídas: entre o amor por Chamilly e o
seu dever a Deus como freira. Como se trata do dramático advindo do confronto do
particular do amor entre os humanos e o geral do amor a Deus, ambos com o mesmo
sentido das características da profundidade como dito no parágrafo anterior, o
drama serve para expressar de forma inigualável a natureza desta dita
profundidade.
Eis que passados mais de trezentos anos as Cartas de Mariana
Alcoforado continuam sendo o que são: a paciente capacidade de entendermos a
nós mesmos através das palavras. E das palavras escritas em textos com estilo
que aos pouco afeitos à leitura incomoda ou que acham tudo que não mensagem no
twitter algo chato. Vindo daí o raso em que viver se tornou um mero reduzir-se
a drops de muitos sabores. Fugazes e propícios a cáries mentais.
Acho que se você leu até aqui, já estamos no excesso que não
se espera dos leitores inabituais. Mas se chegou me anima a trazer alguns
trechos da primeira carta:
“E contudo – parece-me que até aos infortúnios de que és o
causador, eu tenho apego! Ofertei-te a minha vida desse a primeira hora em que
te vi e é ainda um prazer para mim fazer-te o sacrifício dela.”
“Só me queixo do rigor do meu destino. Apartando-nos,
fez-nos ele o maior mal que poderíamos recear. Não conseguirá, porém, apartar
os nossos corações. O amor, que é mais poderoso do que ele, reuniu-os para toda
a vida”
“Adeus, não me atrevo a deixar este papel que vai estar nas
tuas mãos e quereria ter a mesma dita. Ai, que desvairada ando! Como se não
soubesse que tal não me é dado. Adeus, falta-me o ânimo. Adeus, ama-me sempre e
faz-me padecer ainda mais.”
Ficamos por aqui com a canção portuguesa a seguir. O
livrinho com as cartas é da coleção Nossos Clássicos da editora AGIR e tem o
título Mariana Alcoforado.
Não venhas tarde - Carlos Ramos - por excesso coloquei esta música para que estranhes mas ao final atenta-te aos versos finais: "sem alegria eu confesso tenho medo, que tu me digas um dia, meu amor não venha cedo. Por ironia pois nunca sei onde vais que eu chegue cedo algum dia e seja tarde demais."
Um comentário:
Ainda invejo quem sabe amar assim tanto...
è assim meu ideal de amar...Pode ser patético, mas acuso-me!
Lindíssima postagem!
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