por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Erotismo em Branco - Márcia Denser



A porta se abrirá lentamente e eu verei o que tem detrás.

Branca de Neve: O Conto de Fadas

Quando se fala em conto de fadas, fala-se, automaticamente, sobre crianças, sobre o espaço infantil. Segundo Noemi Paz:

O conto de fadas é uma alegoria da passagem iniciática na qual o herói representa a alma perdida no mundo a lutar contra os poderes inferiores de sua própria natureza e contra os enigmas que a vida lhe propõe, até encontrar, após aceitar e realizar as provas, os meios para a sua própria redenção. 1

Sabe-se que o conto de fadas provém do conto maravilhoso e, além de se constituir da literatura popular, manteve-se vivo e se propagou devido à tradição oral. "Branca de Neve"é um dos contos de fadas mais conhecidos e faz parte do imaginário infantil. Como todo conto de fadas, sofre variações conforme o tempo e o espaço.

Neste trabalho, utiliza-se, porém, apenas uma versão: a de Jacob e Wihlelm Grimm. Nessa versão, Branca de Neve é a concretização do desejo de sua mãe em ter uma criança bela. O conto inicia-se assim:


Era uma vez uma rainha. Um dia, no meio do inverno, quando flocos de neve grandes como plumas caíam do céu, ela estava sentada a costurar, junto de uma janela com uma moldura de ébano. Enquanto costurava, olhou para a neve e espetou o dedo com a agulha. Três gotas de sangue caíram sobre a neve. O vermelho pareceu tão bonito contra a neve branca que ela pensou: "Ah, se eu tivesse um filhinho branco como a neve, vermelho como o sangue e tão negro como a madeira da moldura da janela." Pouco tempo depois, deu à luz uma menininha que era branca como a neve, vermelha como o sangue e negra como o ébano. Chamaram-na Branca de Neve. A rainha morreu depois do nascimento da criança.2
Branca de Neve nasce conforme sua mãe desejou: com a tez alva, com as bochechas vermelhas tais qual a cor de uma maçã - fruto proibido, elemento simbólico do prazer, da perdição - e com os cabelos negros. Agrega em si um cromatismo sugestivo, pois o branco faz lembrar a pureza, a inocência; o vermelho, a paixão, a sexualidade e suas madeixas escuras remetem à noite, à escuridão, ao sofrimento.

Segundo Bruno Bettelheim, a história de Branca de Neve, aparentemente inocente e infantil, está carregada de símbolos relacionados à sexualidade, à sensualidade e ao erotismo. Diz ele sobre o referido conto:


Aqui a estória propõe os problemas a resolver: inocência sexual, brancura, contrastada com o desejo sexual, simbolizado pelo sangue vermelho. Os contos de fadas preparam a criança para aceitar um acontecimento que seria conturbador: o sangramento sexual, como na menstruação, e posteriormente na relação sexual quando o hímen é rompido. Ouvindo as primeiras frases de Branca de Neve a criança aprende que uma quantidade pequena de sangue - três gotas (sendo o número três o mais associado no inconsciente com o sexo). - é uma pré-condição para a concepção, porque a criança só nasce depois do sangramento. Aqui, então, o sangramento (sexual) está intimamente ligado ao acontecimento "feliz"; sem explicações detalhadas a criança aprende que nenhuma criança - nem mesmo ela - poderia nascer sem sangramento.3
Por intermédio do espelho - metáfora do voz da consciência feminina, narcísica, invejosa e vulgar - a madrasta da bela moça fica ciente da beleza insuperável da enteada e exige que um caçador mate-a, na floresta, e leve para ela seus pulmões e seu fígado, como prova de que a matou. O caçador, diante da beleza de Branca de Neve, em vez de cumprir as ordens dadas, deixa a moça fugir livre pela floresta julgando que essa não fosse resistir, por muito tempo, sozinha num lugar que mantém tantas ameaças.

A fim de enganar a mandante do crime, o caçador mata um javali que cruzou o seu caminho, arranca-lhe os pulmões e o fígado e os leva ao seu destino. A mulher come as peças, acreditando estar comendo a filha de seu marido. Esse ato canibalesco alude à sabedoria popular que a faz acreditar que, ingerindo partes de Branca de Neve, pode adquirir sua beleza, tornando-se, enfim, a mais bela das mulheres.

Ao contrário do esperado, Branca de Neve resiste e chega à casa dos sete anões. Ao avistarem a moça, a reação é de surpresa e contentamento: "Ó céus, ó céus!" todos exclamaram. ‘Que bela menina!’Os anões ficam tão encantados com aquela visão que resolveram não acordá-la, deixá-la continuar dormindo em sua caminha." (2004: 96). Diante de tamanha beleza, a acolhem sob a condição de ser responsável pelas tarefas domésticas. Os anões lhe dizem: "Se quiser cuidar da casa para nós, cozinhar, fazer as camas, lavar, costurar, tricotar e manter tudo limpo e arrumadinho, pode ficar conosco, e nada lhe faltará." (2004: 91).

Vale lembrar as próprias palavras do conto para observar o estado dos diminutos homens frente à imagem de Branca de Neve. Nesse primeiro momento, o campo lexical acolhe os vocábulos: "bela" e "encantados". Por ser a moça "bela", é capaz de deixar os homens à sua volta "encantados". Sobre esse natural poder de sedução da personagem da história infantil, Francesco Alberoni, em seu livro O Erotismo comenta:


Existem mesmo duas imagens arquetípicas da sedução feminina. A Bela Adormecida, Branca de Neve, Cinderela, onde o homem é atraído pela beleza. Apaixona-se e a mulher parte com ele. A segunda é a da feiticeira (Circe, Alcina) que prende o homem com um encanto. O mito nos diz que Branca de Neve ou a Bela Adormecida estão enamoradas do príncipe.4
Na verdade, na história infantil, os anões não "partem com ela". Esses homens, por serem pequenos, não representam perigo sexual tampouco despertam algum tipo de desejo na bela jovem. Eles a mantém "cativa" da forma que podem e ela responde à pergunta dos anfitriões: " ‘Sim quero ficar, não desejo outra coisa’, Branca de neve respondeu e ficou com eles." (2004: 97).

O enunciado ambíguo sugere algumas interpretações distintas daquelas pueris. Esse "desejo" de ficar pode, aqui e ali, comparar-se à vontade de ser mulher, adulta, objeto de desejo daqueles seres que a acolhem num momento tão difícil. Recorrendo a Bettelheim, pode-se perceber uma visão menos infantil dos anões:


Estes ‘homenzinhos’ de corpos atarracados e trabalhando na mineração - penetram habilidosamente em cavidades escuras - sugerem conotações fálicas. De certo não são homens em qualquer sentido sexual - seu modo de vida e o interesse em bens materiais sugerem uma existência pré-edípica.5
Bruno Bettelheim aponta também, ainda a respeito dos anões, que os conselhos que são dados à Branca de Neve para que não deixe ninguém entrar em casa, quando estiver sozinha, simbolizam, na verdade, o alerta de não deixar ninguém entrar, inclusive, nela. No entanto, tais conselhos são negligenciados, já que a jovem se deixa enganar três vezes pela madrasta disfarçada que bate à porta e anuncia: "Mercadorias bonitas a precinho camarada." (2004: 92).

Curiosamente, em todas as vezes é oferecido a jovem algo que mexa com sua vaidade ou com seu desejo mais secreto. Na primeira vez, a velha ofereceu cadarços multicoloridos, a velha colocou o cadarço tão apertado no pé da moça que ela ficou sem ar e caiu no chão como se estivesse morta; da segunda vez, o "obscuro objeto de desejo" da jovem foi um pente envenenado e - mesmo sendo advertida, outra vez, para não atender a ninguém - sob a fala da velha: "Agora vou pentear seu cabelo como ele merece." - deixou-se enganar, novamente, e, assim que o pente tocou seus cabelos, o veneno fez efeito e a moça caiu no chão. Nessas duas vezes, os anões retornam e conseguem ajudar Branca de Neve. Em contrapartida, na última investida da madrasta, o objeto oferecido foi uma maçã - elemento que faz parte do imaginário coletivo como símbolo do desejo, da paixão, mas também da perdição.

Como se vê, a jovem se deixa levar por seus impulsos e, num misto de ingenuidade e cobiça, cai em tentação. A partir desse último argumento simbólico (a maçã), a madrasta consegue deixar Branca de Neve semi-morta por um longo tempo, pois essa, envenenada, fica atravessada em sua garganta.

Um momento que instiga a imaginação do leitor "adulto" ocorre quando os anões chegam e encontram, pela terceira vez, a mocinha caída no chão. A fim de procurar algo que pudesse ser venenoso, os anões desatam seu corpete, penteiam seu cabelo e banham-na com água e vinho. Nossa! Se essa cena for narrada fora de contexto, pode, perfeitamente, sugerir uma bacanal feita por necrófilos: sete homens, intimamente, em volta de uma mulher morta que conserva ainda a beleza da vida.

Supondo estar a bela moça morta, os homenzinhos colocam-na num caixão de vidro e levam-na para o alto da montanha onde poderá ser sua beleza admirada e cobiçada para sempre, uma vez que, mesmo, aparentemente morta, exibe as bochechas vermelhas como se estivesse viva. Essa "exibição" e o fato de estarem ainda vermelhas as bochechas da moça evocam, mais uma vez, a cor da paixão, a cor da maçã, a cor das gotas de sangue. Não se pode perder de vista que a rainha dividiu a maçã com a Branca de Neve antes de ela morrer, aludindo assim à própria divisão da libido, da sensualidade.

Ao final, como a maioria dos contos de fadas, maniqueísta, o bem vence o mal. Branca de Neve é achada por um príncipe que por ela enamorou-se. Com o consentimento dos anões, resolve levá-la e num descuido de seus criados, ao transportar o caixão de Branca, um solavanco solta o pedaço de maçã envenenada que estava entalado na garganta da bela moça.

É certo que a madrasta recebe seu castigo. Ela é convidada para ir ao casamento da enteada e, mesmo com toda sua inveja e ciúme vai. Ao chegar lá:


Sapatos de ferro já haviam sido aquecidos para ela sobre um fogo de carvões. Foram levados com tenazes e postos bem na sua frente. Ela teve de calçar os sapatos de ferro incandescentes e dançar com eles até cair morta no chão.6
Sobre essa passagem Bettelheim aponta:


O ciúme de sexual incontrolável, que tenta arruinar os outros, se destrói a si mesmo - simbolizado não só pelos sapatos de ferro em brasa mas pela morte que causam, dançando com eles. Simbolicamente, a estória diz que a paixão descontrolada deve ser refreada ou será a ruína da própria pessoa. Só a morte da rainha ciumenta (a eliminação de toda turbulência interna e externa) pode contribuir para um mundo feliz.7
Dessa forma, percebe-se que, até um conto universalmente conhecido e, superficialmente, inocente, apresenta em seus implícitos uma série de sugestões sensuais e eróticas. É possível reconhecer, numa leitura mais ampla e direcionada, os vestígios de uma sociedade cristã, repressora e manipuladora da libido alheia.

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