Epílogo de ano é sempre assim, caro ouvinte. Bate às vezes aquela capiongueira : tantas coisas que podiam ter sido realizadas e que não foram ! Tantas oportunidades perdidas ! Tantos comensais que já não sentam conosco para a ceia! Tantas aspirações frustradas ! Pomo-nos , então, facilmente, no ataque fazendo projetos para o ano vindouro! Desta vez a coisa vai ! Vou parar de fumar! Em 2009 começarei um programa de atividades físicas ! A partir de janeiro , vocês vão ver: inicio a dieta e perderei essses 40 kilos de excesso ! Esta época de férias e de solidariedade algo superficial mostra-se também especial no quesito desejos : fazemos votos de felicidades e prosperidade para tudo e todos. Feliz Natal ! Felizes Festas ! Próspero Ano Novo! Dezembro traveste-se de um clima aparente de compreensão, de amizade, de fraternidade. Uma espécie de trégua na batalha desigual travada por toda a sociedade com muitos abatidos e feridos, nos outros onze meses do ano. Um escritorzinho bissexto como eu sente-se impelido a emergir nesta atmosfera algo enganosa de sorrisos fartos e amorfos chavões. Os raros ouvintes na rua já me olham com aquele ar interrogativo : será que esse incréu não vai fazer votos de realizações pra ninguém ?
Pois bem, por falar em anseios e em Natal, semana passada me veio à lembrança aqueles desejos tão freqüentes nas grávidas . De repente a buchudinha acorda na madrugada e avisa ao marido que está desejando comer jaca, torta de melancia ou outra iguaria qualquer facilmente encontrável às três horas da manhã. O esposo, coitado, arranca em desabalada carreira em busca da comida solicitada, temendo contrariar a natureza, sob risco da menina nascer com corpo em formato de Jaca ou o menino com uma barriga tipo melancia. Pesquisei – coisa de quem não tem muito o que fazer nesses dias morosos – e descobri algumas constatações científicas interessantes. O velho Vicente Vieira, meu avô, achava que tudo aquilo era encenação das grávidas, charminho pra cima do marido e concluía enfático “ Nunca vi uma desejar coisa ruim, é só chocolate, tapioca quente com nata, doce de leite com queijo de manteiga”! Pois bem, amigos, a ciência admite que estes desejos existem de verdade e devem-se provavelmente às intensas alterações hormonais que acontecem durante a gravidez. E mais , ultimamente sua freqüência tem aumentado muito em todo mundo, pesquisas comprovando que, atualmente, ¾ das gestantes sofrem desta compulsão . Infelizmente para os feios como o Heron, o Vicelmo, o Geraldinho, a Ciência não permite colocar-se a culpa da feiúra nos desejos maternos não satisfeitos : essa cara de carranca do São Francisco , meu amigos, foi azar mesmo e o jeito é se conformar com os erros eventuais da santa natureza. Se servir de consolo : talvez o que faltou em vocês a natureza colocou de sobra na Gisele Bündchen e na Juliana Paes. Valeu a pena o investimento!
Mas o que me despertou, semana passada, nesta época natalina, para os desejos? Uma amiga nossa, aqui de Crato, grávida em Fortaleza, sentiu, subitamente, o desejo irreprimível de comer algo totalmente inusitado. Imaginem o quê ! Um sanduíche do Enoque ! Talvez os mais novos não se recordem do fabuloso cachorro quente de Enoque.. Todo ano ele punha uma pequena barraca na Expô/Crato e vendia um sanduba simplesmente fabuloso que faz parte da memória gustativa de toda uma geração de caririenses, assim como a tapioca com fígado de canena , o caldo de mocotó de Bosquim, o Doce de Leite de Isabel Virgínia. Há alguns anos, inconformado com as altas taxas cobradas pela organização do evento e as misteriosas prestações de contas, ele desistiu. Enoque foi um jogador de futebol dos mais inspirados e ainda vivíssimo reside ali pras bandas da Caixa D´água. As novas gerações acostumadas àquele sanduíche de isopor da Mac Donalds e do Bob´s possivelmente não irão compreender o desejo da minha amiga. A mãe da nossa buchudinha procurou nosso sandwichman e ele preparou com todo gosto e requinte seu inesquecível sanduba que foi mandado de avião no mesmo dia, para a salvação do bebê que , caso contrário, corria o risco de nascer redondinho, insulso, insípido e inodoro como um Big-Mac.
Pois foi justamente esta historinha que me inspirou a escrever esta croniqueta de fim de ano. Todos nós ficamos grávidos de sonhos e aspirações neste período natalino. Pois aí vai também o meu desejo !Ah como seria bom se tivéssemos desejos parecidos como os de minha amiga. Se todos nós acordássemos na madrugada com aquela vontade insaciável de ouvir uma música de Abidoral, dançar um Reisado do Mestre Aldenir, comprar um quadro do Karimai, , sapatear um Coco da Dona Edite, usar uma Sandália do Mestre Expedito das Nova Olinda , botar na sala uma xilogravura de Maésio, deliciar-se com uma poesia do Marcos Leonel. Ah como o menino dos nossos sonhos nasceria bonito e robusto e o Ano novo romperia no horizonte com novos vagidos de paz e esperança !
26/12/08
Postado por jflavio às 14:25 0 comentários
terça-feira, 23 de dezembro de 2008
O Veio da Vida
Acordou encafifado: meio barro, meio tijolo. Mundo se projetando algo sombrio, como um filme noir. As paredes da velha casa , opressivas , carregavam-se com aquele limo pegajoso e úmido das prisões.A vida resumia-se a alguns fragmentos desconjuntados do passado: um puzzle disperso, impossível de ser reorganizado.Rápido percebeu que faltavam resquícios de vida ao derredor , até mesmo porque o ambiente é apenas um mero reflexo das nossas luzes interiores. Quem sabe, adornando aqueles interiores com o verde frescor de alguma begônia, o mundo se re-imantaria de magnetismo vital ? Perambulou pelas ruas como quem procura um objeto inencontrável : o Santo Graal da felicidade desvanecida.
As rosas da floricultura lhe pareceram opacas e inodoras . Os pássaros na feirinha apresentaram-se profundamente silentes e apenas refizeram na sua alma a angustiante gaiola em que subitamente vira transformada, pela manhã , o seu “ Lar Amaro Lar”. Nem lojinha de animais de estimação melhorou-lhe o ânimo, sentiu-os como que empalhados e, num átimo, percebeu que o hamster, o periquito, o chihahua seriam incapazes de repovoar o deserto em que se transformara a casa. Sequer os peixes multicolores no aquário iluminado no cantinho da loja resplandeceram alegria e vivacidade.
Sentia-se como único sobrevivente de uma explosão nuclear, tentando refazer o mundo com os dispersos estilhaços que restaram. Desiludido , sem saber bem porque nem pra que, comprou de um vendedor introspectivo e frio, um aquário, sem água e sem peixes. Seguiu para casa com aquele trambolho e colocou-o , sintomaticamente vazio , na pequena estante da sala que abrigava a TV. Pressentiu, com os dias, que aquele aquário como que representava um retrato da sua alma: oca, ressequida e sem aparente utilidade. Aquela imagem, estranhamente, aumentou o ar denso e quase irrespirável da sala.
Saiu, no outro dia, em busca , de um habitante para o aquário. Na esquina encontrou um vendedor de fósseis e , num ímpeto, adquiriu um pequeno peixe petrificado. Em casa colocou-o cuidadosamente dentro do aquário. Com o passar dos dias foi como se a sala se iluminasse. Já não existiam objetos ao derredor, o fóssil no aquário da sala alegrava-lhe a vida, mas , por outro lado, mantinha-o hipnotizado e submisso. Não mais saiu à rua, deixou de atender telefone, a TV já não tinha qualquer sentido. Algumas semanas depois começou a notar que as paredes da casa se iam tornando mais escuras e compactas e avançavam em direção ao centro , como se fossem se encorpando, dia após dia. Começou notar em si mesmo a pele mais escura e endurecida e com o passar do dia se foram transformando em escamas. As articulações se foram emperrando até leva´-lo à total imobilidade. Um belo dia as paredes da sala o aprisionaram definitivamente. Desde então aguarda , ansiosamente, as pancadas do martelo que rompam o veio da pedra e mostrem seu testemunho petrificado para a estonteante mobilidade da vida.
Crato - 23/12/08
Postado por jflavio às 18:55 0 comentários
sexta-feira, 19 de dezembro de 2008
Presente de Natal
--- Trimmmmmmm !!!!!!!
O estampido do telefone soou dentro da sua alma , como se tratasse de uma locomotiva a vapor. É que os últimos meses tinham sido terríveis. Funcionário de uma estatal, com salário minguado , mas regular, há um ano aderira a um destes fabulosos planos de demissão voluntária. Não dava mais para suportar o ambiente de trabalho: cobranças ininterruptas e o chefe olhando pra ele com aquele cara de carrasco , de “cuidado , você é o próximo!”. Pegou a indenização parca que lhe pagaram pelo seu suicídio prematuro e abriu um pequeno negócio de portões eletrônicos. De início a firma andou de vento em popa: com a incrível insegurança urbana, os homens precisam criar os seus castelos inexpugnáveis, pensando que assim podem se isolar do mundo. Chegou até a imaginar que a demissão tinha sido uma das melhores decisões que havia tomado. Em pouco, porém, o mercado se viu saturado, eram tantos e tantos outros , na mesma situação dele, dividindo a mesma fatia do bolo! Não bastassem as pequenas piabas iguais a ele, com a globalização entraram peixes grandes no aquário e aí , a ração só sobra para os tubarões! Quebrou e se encontrava naquela situação desesperadora: os amigos antigos se afastaram, os cobradores batiam à porta a todo instante, os filhos já tinham sido transferidos para escolas públicas, o aluguel atrasado quatro meses e ninguém mais aceitava seus vales. Os vizinhos diziam, com sorriso maroto: --“Não tem crédito nem para comprar a vista!”. Esse era o fosso verdadeiro em que se encontrava no exato momento em que o telefone tilintou , desesperadamente: talvez por isto foi que penetrou tão agudamente no fundo da sua alma.
--- Trimmmmmmmmmmm!!!!!!
Nos últimos dias aquele aparelhinho havia feito pacto com o demo. Atendê-lo configurava-se em causa imediata de aborrecimento. Cobradores circulavam sua casa , como aves de rapina e as chamadas eram uma espécie de aviso prévio do ataque faminto e guloso. Assim pediu à esposa que atendesse e desse uma desculpa qualquer: saiu, viajou, foi para a missa! A companheira atendeu contrafeita : já não mais suportava criar estórias fantasiosas e esfarrapadas. O semblante tenso da mulher relaxou um pouco quando ouviu a voz do interlocutor, do outro lado da linha. Conversou pouco e formalmente: tudo bem, tudo em paz, todo mundo com saúde! Virou-se aliviada para o marido e passou o fone:
--- Sua mãe!
Num primeiro momento, sentiu-se aliviado. Nada como ouvir a voz da mãe num momento destes. Certamente tinha sido o sexto sentido materno que havia , como um timer, disparado e a impulsionara a ligar imediatamente para o filho. A velhinha morava em outro estado e andava muito doente: perdera a vista praticamente, ouvia mal e deslocava-se com grande dificuldade. O filho pressentia, no entanto, que em meio à tamanha debilidade orgânica, havia uma força estranha e profunda, aquela energia materna, capaz de reacender as mais arrefecidas esperanças. No instante seguinte, porém, estacou absorto e vacilou : seria justo beber aquela última centelha de luz, da sua mãe ? Ela a cederia com o maior prazer e abnegação, mas seria justo?
--- Mamãe? Tudo bem ? Aqui tudo às mil maravilhas! Os negócios estão crescendo, como nunca imaginei. Sou agora um dos maiores empresários do estado! Reformamos a casa e estou falando com a senhora, neste exato momento, deitado numa cadeira , na beira da piscina olímpica aqui do quintal. A mulher arranjou um trabalho na procuradoria do estado e está ganhando uma nota preta. Troquei o carro esta semana , por um outro do ano e importado. Como o Collor, já não agüentava estas latas de sardinha nacionais! Queria até que o seu neto, mamãe, estivesse aqui para falar com a senhora, mas foi para os Estados Unidos, conhecer a Disney e só volta no fim do mês. Não vamos poder ir agora no final do ano, infelizmente, porque estou ampliando a fábrica, mamãe; logo que tiver uma folguinha, dou um pulinho por aí. Beijo, mamãe! Feliz Natal para a Senhora. Sei que a senhora tá feliz, sei, não precisa nem dizer.Tchau!
Defronte dele, a mulher embasbacada, parece que tinha visto fantasma. Ele, calmamente, desvendou o mistério: Ela, minha filha, está doente , já não pode vir nos visitar e ver a porqueira de vida que estamos vivendo e mesmo que viesse, está cega, não viria nada. Quantas vezes ela, na minha infância não fez o mesmo? Seu pai não tarda a chegar! Quando ganhar na Loteria te dou uma bicicleta! Vou arrancar este dentinho de leite, não vai doer nada!Esta foi a única maneira que eu encontrei de dar para ela um presente neste Natal!
A mulher , entre lágrimas, sorriu! Adivinhou que são afinal estas pequenas mentiras , estes leves engodos que tornam a vida suportável e que vão realimentando as nossas baterias gastas, pelo tempo afora . Sem este filtro cor de rosa, a vida que já é um curta metragem ,surgiria aos nossos olhos, violentamente, com seu verdadeiro , sombrio e cru preto-e-branco. Estas mentirinhas, afinal, são como um prisma que se interpõe entre o frio e translúcido feixe de luz da vida e que acabam por fazer a refração , muitas vezes a transformando na beleza fugaz, mas multicolorida do arco-iris.
19/12/08
Postado por jflavio às 07:41 0 comentários
quarta-feira, 17 de dezembro de 2008
Natal
Mais uma vez, o final do ano. Os espíritos já se banham nas doces águas do Natal e do Ano Novo. As luzes natalinas iluminam as praças e os jardins. Mensagens emboloradas já circulam pelos correios e pela Internet. O comércio rejubila-se com a consumista solidariedade. Os meninos do Grangeiro já estendem seus sapatos nas janelas na certeza da vinda do bom velhinho. Os da Batateira, tristes e desesperançados, preferem recolher as sandálias, na certeza de que Papai Noel nunca faz escala por lá. Os perus calam seus guglus e os leitões recolhem temerosos seus pernis : serão imolados em sacrifício nos altares natalinos.As famílias durante todo o ano desunidas , com os ares natalinos se tornam reunidas e , em trégua , recolhem um pouco as armas, até o toque de alvorada do ano novo.Lábios sussurrarão preces maquinalmente , num fervor vazio e superficial. Os bares e restaurantes se apinharão de confraternizações: um sem número de empresas reunindo funcionários e criando um momento fraterno e solidário que acabará daqui a pouquinho, embora devesse se estender por todos os dias do ano. Nos templos , homens e mulheres contritos se darão as mãos efusivamente, desejando-se felicidades mil ; as mesmas mãos que logo em seguida se fecharão para os mendigos e se cruzarão no peito para a miséria do mundo. As ceias natalinas, quanto mais fartas, mais prenhes de alimentos estranhos e estrambóticos: figo, nozes,tender, lentilhas, chesters, panettones , champanhe, passas e uvas.Servem mais para alimentar a vaidade dos anfitriões do que o estômago dos comensais. A Ceia que modificou os destinos da humanidade não foi regada apenas a vinho e pão?
As festas trazem sempre consigo alguma atmosfera de tristeza e de saudade. Com o passar do tempo, pessoas queridas já não respondem à chamada. Talvez porque, como dizia Manuel Bandeira, estejam todos dormindo, dormindo profundamente... Um belo dia estaremos sós diante da grande Távora vazia de cavaleiros.Algumas recordações se espreguiçarão a um canto, o passado grávido se debruçará em algum móvel da sala. . Talvez , neste dia, um comensal de longas barbas sente conosco na longa e solitária tábua e divida conosco o pão e o vinho, não mais que isto. Perceberemos então que a mesa se tornou gigantesca , acolhendo nossa nova família que agora possui irmãos de incontáveis cores e raças. Celebram as primícias da vida, com sua essência de fugacidade e de mistérios, enquanto se vai servindo a ceia farta regada pelo milagre dos peixes e dos pães.
17/12/08
Postado por jflavio às 12:53 0 comentários
segunda-feira, 15 de dezembro de 2008
A Fresta
--- Não se esqueça de pôr a janela dentro da minha mala, minha filha !
Aquela frase, dita de supetão, turvou o ânimo de toda a família. D. Mafalda mostrara-se sempre um exemplo de lucidez. Viúva precoce , conduzira toda récua de filhos com cabresto curto.A duras penas, com o minguado salário de professora, realizara o milagre dos pães e dos peixes. Nada faltou aos meninos do essencial e, vezes por outra, permitia-lhes um ou outro artigo mais chique , pois entendia, perfeitamente : é do supérfluo que se alimentam os sonhos. Seu esforço e sua rédea apertada surtiram o efeito imaginado, aos poucos se deparou com os rebentos encaminhados , quase todos formados e tocando a vida sem maiores atropelos. Todos reconheciam o árduo trabalho da mãe que lhes dedicou o melhor de seus dias e retribuíam-lhe com o conforto, o afeto e o carinho tão necessários à velhice. D. Mafalda morava na antiga casa da família apenas com uma agregada de muitos anos e que praticamente já fazia parte do clã. Apesar da distância, os filhos ainda lhe eram ligados umbilicalmente . As rugas e as cãs que lhe foram ofertando os anos proporcionaram-lhe um ar tranqüilo de monge tibetano. Todos os problemas envolvendo netos, bisnetos, noras, genros e os próprios filhos, invariavelmente vinham bater à porta da velha senhora e seus conselhos não só abriam caminhos, desarmavam espíritos, como adquiriam força de lei.Ao quebrar, no entanto, o cabo da boa esperança , aí por volta da oitava década, o peso da idade começou a parecer mais perceptível. D. Mafalda apresentava lapsos freqüentes de memória, muitas vezes já não reconhecia parentes mais próximos . A velha mucama relatava : ela andava “tresvariando” e conversando “arisias”. Os filhos preocuparam-se de início, levaram-na à consulta com geriatra, mas aos poucos perceberam que a seiva que nutria o caule de D. Mafalda começava a secar e aqueles lapsos significavam a queda das primeiras folhas, o ressequimento dos primeiros galhos que antecediam o fenecimento da frondosa árvore.Reunidos os filhos, optaram por deixá-la morando no seu próprio cantinho e contrataram duas enfermeiras para acompanharem o tratamento da mãe, uma vez que a velha empregada , artrítica, já não possuía forças para cuidados mais continuados.
Poucos meses depois, a companheira inseparável de D. Mafalda , subitamente, vez a viagem derradeira. Dormiu na terra e acordou no céu, conforme se comentou no velório. A perda da amiga de luta abateu intensamente a inabalável matrona. Sentiu quase como se perdesse o esposo novamente. Nos dias mais difíceis, a secretária fora de tudo : irmã, colega, confidente e ajudara na criação dos meninos como se os tivesse dado à luz.Esta nova perda embotou visivelmente o ânimo de D. Mafalda. A partir daí parece ter se acentuado seu processo de demência. Nova reunião e os filhos acharam mais sensato transferi-la para a casa da sua primogênita. Leocádia , após o divórcio, morava praticamente só, pois a filharada já ganhara o mundo e tinha vida própria.A aterradora frase de D. Mafalda soara justamente no momento em que Leocádia arrumava os pertences da mãe , providenciando a transferência planejada.
---Não se esqueça de pôr a janela dentro da minha mala, minha filha !
Passado o primeiro estupor(Meu Deus, mamãe agora pirou de vez !), os parentes começaram a refletir sobre a frase pronunciada por Mafalda.Enquanto arrumava os velhos guardados, acumulados ao longo de tantos anos, cada um embebido de vida e de passado, Leocádia começou a pensar no pedido da mãe. Que bom seria se se pudesse levar a janela da nossa casinha , a cada mudança que se fizesse na vida ! Bastava colocá-la em uma das paredes da nova residência e teríamos fresta aberta para o éden .Ao sentir saudades dos antigos vizinhos , era suficiente apenas se postar diante da janela mágica e perguntá-los pelas novidades. À noite, quando o silêncio baixasse sobre a cidade, seria possível conversar com os conhecidos fantasmas do casarão antigo, ao se aproximar da janela que trouxemos na mala.O bulício da rua sagrada da nossa infância estaria sempre ao nosso alcance, se pudéssemos carregar aquele velho rasgão que nos uniria eternamente ao passado. Além de tudo, furtada a janela, qualquer dissabor que nos turvasse a alma, saltaríamos para o quintal da nossa juventude e nos banharíamos nos seus indevassáveis mistérios: a goiabeira confidente, o velocípede veloz, a tina com seus segredos aquáticos. Depois, voltado o enlevo, ajoelharíamos na úmida areia e colheríamos todos os cacos dos nossos sonhos partidos, das nossas ilusões fragmentadas, da nossa felicidade espedaçada nas calçadas da realidade. Teríamos então todo o tempo do mundo para tentar refazer o quebra-cabeça. Quando assim nos aprouvesse, nos seria dado o direito de fechar a janela e mergulhar no presente, mas cuidadosamente deixaríamos a tranca frouxa, para qualquer emergência mais premente.
É , pensou Leocádia com seus cacarecos, D. Mafalda, talvez ainda esteja mais lúcida do que pensávamos.No auge do delírio talvez tenha nos legado sua mais sábia lição : qualquer mudança que empreendermos na existência, nunca se deve esquecer de colocar na mala, uma janela. É que as portas da vida estão sempre à frente, mas a felicidade, a alegria, o prazer estão nas pequenas janelas que por acaso tivermos a capacidade de escancarar para o pomar da nossa juventude e da nossa infância.
15/12/08
por jflavio
Nenhum comentário:
Postar um comentário