É confortável, sobretudo para um leitor curioso, reler qualquer autor à luz da leitura dos estudiosos, que com suas análises e críticas trazem elementos novos para um melhor entendimento do autor, da sua obra, da intertextualidade literária, provocando, assim, uma leitura mais completa e prazerosa.
Este prazer me foi dado agora ao reler Estrela da Vida Inteira, de Manuel Bandeira, e escolher um poema para comentar neste texto. Foi difícil eleger um poema, se gosto de tantos! Enfim, decidi-me pela temática amorosa, aliás, por uma vertente da temática amorosa: a estrela, configurada ano, nascido em Recife, em 1886, o poeta Manuel Bandeira viveu a maior parte da sua vida no Rio de Janeiro. Publicou o primeiro poema, um soneto em alexandrinos, no Correio da Manhã, em 1902.
Jovem, com apenas dezoitos anos, adoece dos pulmões. Em busca de cura para a tuberculose, peregrina por cidades serranas do Brasil e em 1913 embarca para o sanatório de Clavadel, na Suíça. Durante os 13 anos dessa peregrinação, Bandeira aprimorou sua formação técnica, tornando-se o “poeta poeticamente mais culto e senhor de seus recursos”, nas palavras de Ivan Junqueira.
Os livros – A Cinza das Horas (1917) e Carnaval (1919) trazem os primeiros escritos de Bandeira marcados por influências do “simbolismo francês e português, do romantismo alemão e do lirismo quinhentista português”.
Embora tenha se recusado a participar da Semana de Arte Moderna de 1922, Manuel Bandeira é figura importantíssima no Modernismo Brasileiro. “Os sapos” e “Poética” são poemas de Bandeira que estabelecem uma relação com o Modernismo, assim como também o faz o humor sarcástico de “Pneumatórax”.
O ensaísta e poeta Ivan Junqueira adverte que “na poesia de Manuel Bandeira, como na de qualquer poeta cuja obra comporte momentos de transição entre um e outro estágio instrumental, o recurso da dissolução rítmica encontra-se intimamente relacionado à técnica do verso livre”. E Manuel Bandeira falando do processo criativo de “O ritmo dissoluto”, o define como “um livro de transição entre dois momentos” de sua poesia e que com ele atingiu “completa liberdade de movimento”.
Depois de O Ritmo Dissoluto, vem um outro livro com poemas escritos de 1924 a 1930. É Libertinagem, do qual o poeta afirma ter abusado do verso livre, razão, portanto, do seu título.
Também nos versos livres Bandeira é puro lirismo. Junqueira se refere ao poeta como “o símbolo supremo do lirismo, consubstanciado na luz daquela estrela “tão alta” e “tão fria” que pulsa do princípio ao fim na solitária e úmida noite em que floresce a poesia de Bandeira”.
Ler os poemas de Bandeira é deixar-se embalar pela cantiga dos seus versos, pela rima, pelo ritmo, pura sonoridade, como se escutássemos as histórias que Rosa contava ao menino, como se Vésper também caísse em nossa cama, como se fôssemos todos pra Pasárgada impregnados de lirismo.
Manuel Bandeira é senhor de um Eu lírico, que com a mesma maestria traça o caminho dos meninos carvoeiros e seus burrinhos descadeirados, inventa um desfilar circense para Mozart no céu, vê o beco, se desalenta procurando a inacessível estrela da manhã, ou da tarde. Bandeira trata com tal fervor e simplicidade os mais diversos temas do cotidiano e da imaginação, que transporta o leitor para a construção dos versos, para ouvir sua voz, sua vida pulsando em cada poema.
Em Bandeira a temática amorosa está presente desde os primeiros livros, no “tom elegíaco e intimista” (Junqueira) e na concepção do amor erótico, da volúpia sensual, com metáforas simbolizando, quase sempre, a frustração amorosa, a distância entre desejo e objeto do desejo, a rosa inacessível sobre a escarpa, a estrela fria, alta, na “vida inteira que poderia ter sido e que não foi”.
O poema A estrela é lindo e triste! As palavras, magistralmente cadenciadas nos versos, configuram a tristeza e a desesperança do poeta que vê a estrela tão alta e tão fria cintilando a solidão da sua noite, da sua vida.
A ESTRELA
Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
Era uma estrela tão alta!
Era uma estrela tão fria!
Era uma estrela sozinha
Luzindo no fim do dia.
Por que da sua distância
Para a minha companhia
Não baixava aquela estrela?
Por que tão alta luzia?
E ouvi-a na sombra funda
Responder que assim fazia
Para dar uma esperança
Mais triste ao fim do meu dia.
A angústia, gerada pela “ausência” de uma amada que “desapareceu ia nua”, leva o poeta a incitar amigos e inimigos a procurarem a estrela da manhã. O poeta a deseja mesmo que “pura ou degradada até a última vileza”.
“ESTRELA DA MANHÃ
Eu quero a estrela da manhã
Onde está a estrela da manhã?
Meus amigos meus inimigos
Procurem a estrela da manha
Ela desapareceu ia nua
Desapareceu com quem?
Procurem por toda parte
(..........)
Pura ou degradada até a última baixeza
Eu quero a estrela da manhã.”
Apregoando “Tenho o fogo de constelações extintas há milênios/E o risco brevíssimo – que foi? passou – de tantas estrelas cadentes” (Belo Belo (Lira dos cinqüent’anos), o poeta lança mão do símbolo “estrela” para “exprimir a hierarquia entre os vários amores que teve: uns profundos, que permanecem intactos em sua lembrança, apesar do correr dos anos, e continuam a iluminar-lhe a existência da mesma forma que as constelações há muito extintas continuam a brilhar no firmamento; outros breves e de passagem, que atravessaram a sua vida com a rapidez das estrelas cadentes riscando o céu”, na análise de Gilda e Antônio Cândido.
A ESTRELA E O ANJO
Vésper caiu cheia de pudor na minha cama
Vésper em cuja ardência não havia a menor parcela de sensualidade
Enquanto eu gritava o seu nome três vezes
Dois grandes botões de rosa murcharam
E o meu anjo da guarda quedou-se de mãos postas no desejo insatisfeito de Deus.
Neste último poema é a estrela da tarde, Vésper, a personificação lírica e metafórica do êxtase amoroso. No entanto, é só o corpo que vive essa plenitude, o “desejo insatisfeito de Deus” só alma o realizará “Só em Deus ela pode encontrar satisfação” (Arte de amar).
Se olharmos por uma perspectiva mitológica também veremos confirmada a incansável busca do poeta pela realização amorosa, simbolizada pela estrela que brilha pela manhã ou a estrela da tarde, que não é outra senão o planeta Vênus – a estrela mais brilhante no céu. Assim, estamos diante da deusa do amor, Afrodite para os gregos, Vênus na mitologia latina. Segundo o professor Junito Brandão, o Hino Homérico a Afrodite canta sua “hierofania voluptuosa que transtorna até os animais que se recolhem à sombra dos vales, para se unirem no amor que transborda de Afrodite”.
Ora, a poesia de Manuel Bandeira está repleta do amor venusiano, erótico, carnal, voluptuoso. Para Ivan Junqueira estão equivocados os que atribuem à obra bandeiriana uma intensa sublimação do amor, posto que “na sua poesia a mulher corresponderá sempre a uma entidade tangível, pulsátil”, que já se manifesta na sua meninice, recordada em Evocação do Recife: “Um dia eu vi uma moça nuinha no banho./(...)Foi o meu primeiro alumbramento”.
Um comentário:
Grande Manuel Bandeira! Um dos maiores poetas da nossa Literatura.
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