O terno marrom (Dr. Demóstenes Ribeiro *)
(para a Dona
Zaíra – minha mãe – in memoriam )
Éramos uma família rural, sobrevivente de
um tempo remoto e deslocado no mundo desde o fim da escravidão. Sem mais
vassalo, nem mais senhor nem sinhazinha... Ninguém sabia fazer nada, veio a
derrocada, vendeu-se a fazenda por uma ninharia e se deu a fuga prá cidade.
Mas como sobreviver? Meu pai delirou, se
desfez do sítio Pau D’Arco e comprou uma casinha na cidade. Trouxe a mulher e os
filhos, mas passava o dia inteiro no baralho onde perdeu o pouco que restou. No
desespero, fugiu pro Maranhão e morreu por lá. A minha mãe, coitada, mantinha as
aparências com cinco filhas, um filho doente, um arruaceiro, um malandro e um
ou outro agregado que vez por outra aparecia por lá.
Nas
noites de angústia, me lembrava da minha infância feliz e do rio Salgado, onde
aprendi a nadar com um tronco de bananeira, e alimentava a fantasia pueril de um
dia tocar bandolim.
Mas Deus não nos desamparou por inteiro.
Não sei como, um comerciante de bom coração se casou com uma das minhas irmãs,
e não mais sofremos tanta necessidade.
Certo dia ele abrigou um sobrinho
adolescente e o empregou na sua loja. Humilde, mas de valor, o rapaz com o
tempo passou a gerente. Eu trabalhava no caixa, nos dávamos bem e começamos a
namorar. Logo estaríamos casados: o amor e as suas conveniências – teríamos onde
morar e eu ajudaria a minha mãe.
Ele se mostrou um comerciante fino, lutou
como um leão e começou o seu próprio negócio. Aos domingos, levava os meninos à
igreja e assistia a missa de terno e gravata: uma das minhas melhores
lembranças. Nossos filhos foram saudáveis e a vida, um relativo sucesso As
mulheres me invejavam e eu era muito enciumada.
A sua loja se tornou a maior da cidade.
Nos dias de feira os sertanejos a freqüentavam, mas também nos outros dias todo
o mundo passava por lá. As mulheres o adoravam e os alfaiates o recomendavam.
Um deles, o Zé Leôncio, especialista em
ternos, tinha um xodó com a Chica. Morena vaidosa, sempre de saia justa, batom
vermelho e lenço colorido na cabeça, como se fosse um turbante. Tornou-se
exclusiva do alfaiate e causava ódio nas donas-de-casa.
Almir,
um mulato delicado e de calça muito apertada, colecionava fotonovelas - Capricho, Fascinação, Sétimo Céu -, e as
emprestava à moçada. Gostava de costurar para os rapazes e de tomar as suas
medidas, principalmente as do gancho.
E o Nezinho fazia a roupa do povão. Baixinho,
usava brilhantina no topete e tinha um bigode ralo. Com fita métrica sobre os
ombros, caderneta no bolso e lápis na orelha, costurava de todo o jeito, fosse qualquer
a eventualidade. A sua mulher, Gerolina, peituda e de bunda respeitável, vivia
prá cima e prá baixo. Quase não parava em casa.
O meu marido era assediado e não podia ver
um rabo de saia. Alegre e gentil com as mulheres, vez por outra cantarolava ‘’Amada amante”. E Gerolina passava
sempre na loja para comprar alguma coisa ou ver as novidades. Nezinho pouco se
importava, mas eu não gostava nem um pouco do assanhamento dela.
Num fim de tarde de um feriado, a loja
quase fechada, de longe eu vi que ela entrara. Não me viram. Cheguei sem ruído
e fiquei no depósito, atrás de uma pilha de colchões. Os sem-vergonhas se
agarraram e o meu marido dizia: ‘’vai, meu
amor, tira a roupa, não tem ninguém, não ...’’ Gerolina arfava e sussurrava,
‘’não é perigoso? Nezinho pode chegar...`` E a voz rouca do meu marido, ``não se preocupe, se aparecer a gente dá um
terno pra ele...’’
Então, quase de imediato, pela a porta
entreaberta, veio a voz fina e anasalada: ‘’mas
só se for marrom!’’
Gerolina se vestiu às pressas e eu não
segurei a gargalhada.
(*) Dr. Demóstenes Ribeiro é médico cardiologista, natural de Missão Velha, atuante e residente em Fortaleza-CE.
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