Sempre são cinco da tarde na casa de Armando. Embora o tempo seja incerto, é certo que lá o tempo não passa, ou, pelo menos do modo como passaria em outros lugares. O lá, a que me refiro, é uma vila pretensiosamente burguesa, ou, para ser mais atual, rica. Na realidade não passa de um conjunto de casas pequenas enfiadas ao pé de uma serra no Ceará.
Evidentemente essa pretensa burguesia, que mimeticamente toma chá das padarias caras do centro as cinco horas -não aquelas da casa de Armando, mas de fato cinco horas -, tem sua teia de angústias, de dissabores, que no mar do sofrimento humano se resume a pequenez da inveja, da mentira e da frustração.
Armando que apesar de residir nesse mesmo ninho, onde por sinal sua família é uma das mais evidentes. Suas tias são empresárias de renome, outras donas de escolas, a mãe proprietária de uma infinidade de casas, cujas quais aluga e se mantém através delas. O pai, uma cicatriz que não para de sangrar na face da família, é conhecido como João.
Na realidade João é um antigo celibatário, primo distante da família, que, nos idos anos setenta, a família vendo-se a jovem Clarice grávida, filha de família nobre, e, para piorar grávida de um filho que resultou de uma bebedeira cuja qual sequer pôde identificar o pai, optaram por arranjar um que, ao contrário do que era de costume, não foi as pressas.
- O que está feito está feito Clarice, não adianta chorar. O que nos resta agora é achar uma maneira para que seu nome de puta não se espalhe por todos os cantos.
A sutileza de fato não era uma prioridade de Armínia, que, não por falta de talento, mas por falta de paciência assim se expressava. No fundo era de fato uma pessoa reta, autêntica e verdadeira, e sabendo sua consciência disso, não aliviava com ninguém.
Sua mãe chorava pelos cantos, e olhava Clarice como a uma leprosa. As narinas se dilatavam em uma raiva indizível. Era algo que a violência física seria uma simplificação do seu sentimento. Ademais, não havia nada mais do que um saco de rugas em uma consciência ainda que afiada.
- Quem é o pai disso aí que está em tua barriga Clarice. Diz logo!
Com a boca entreaberta, sentada em um sofá de teias de vive de braços laçando as pernas e joelhos na boca, nada dizia. Apenas sentia as palavras como dardos e os olhos que ardiam como fogo lacrimejavam sem pressa. Na realidade Clarice estava em um estado de consciência paralelo, onde pouco do que lhe diziam era retido, mas que pesava em seus ombros um sofrimento sem par.
Clarice não sabia quem era o pai da criança. Apenas lembrava que em um sábado depois do carnaval havia ido a uma festa depois da escola. Ligou para a mãe do centro da cidade dizendo que demoraria: Passaria em um armarinho com as amigas, faria deveres escolares na casa de outra, a noite todas iriam ao cinema, e antes das dez como sem falta estaria em casa.
De lá atravessaram o centro, meteram-se em um bairro distante onde debaixo de um pé de mangueira em uma chácara, uma festa regada a vinho e cerveja ela que ninguém conhecia, se deixou levar pela bebida, pelo riso fácil, pela simpatia serpentina de um ruivo de olhos verdes. Lá, dentro de uma Rural velha, atolada atrás das bananeiras o concebeu.
Enxugando as lágrimas lembrava da cena e nada dizia. Beatriz, que até então estava calada, tremendo as penas sentada, enfiando o dedo anelar na madeira do centro até estalar pela sala em um compasso impertinente e repetitivo, levanta. Bebe água de um filtro de barro vermelho em uma caneca de alumínio com seu nome sugere:
- Joãozinho bem que poderia ser o pai.
A sugestão solta como uma pedrada deixa todas atônitas, excitadas e inquietas. Cada uma achando mais absurdo que a outra. Armínia e a mãe entreolham-se como se afinassem a um instrumento. O nome de fato era perfeito. Joãozinho era um primo segundo que apesar de metido com coisas da igreja, claramente desejava Clarice.
Nas festas em sua casa Joãozinho atendia a todas em uma educação e refinamento tipicamente francês, lembrava Armínia, que nunca conheceste um francês na vida e tampouco sabia sequer a capital da França. O olhar apesar de faminto, não era corajoso o bastante para fitar. Contido, acabava ela passando por mais malicioso do que de costume, sendo forçado a olhar para o corpo da menina – não que ele também não quisesse – que se espremia em um vestido de brim branco azulado.
Beatriz completa:
- Não sei e nem quero saber quem é o pai disso aí, mas, que ele tem que ter um pai ele ter que ter. Nem que nos o fabriquemos agora mesmo. Se é para escolher, que seja o Joãozinho.
Falava apontando para a barriga do irmão como se a criança tivesse alguma coisa da situação, ou pior, como se por isso mesmo tivesse ela algum direito de humilhar a irmã. Na realidade tinha. Não só ela, mas toda a família.
Armínia que junto com a mãe, sorriam com os olhos. Já entendiam que de algum modo, o pobre João, menino devoto, que como único pecado tinha o de ser humano, e ter lá, em seu canto, sem dizer palavra, seus desejos que escorriam por vezes pelas retinas.
Setaram-se à com os cigarros em brasa e cinzeiros cheios. Tiraram o ganço de louça que enfeitava a mesa e puseram-se a armar a ocasião que Clarice seria molestada. Isso era sujo, era feio, mas, frente a situação, se justificava. A mãe dizia em silêncio para si: - Nosso senhor há de entender.
- Próxima semana terá o aniversário de Bianca, nossa prima em comum. Provavelmente será na casa da serra, onde geralmente fazem as festas. Encontrei com Dona Roberta no centro e ela já me fez o convite. João estará lá com a família. Sempre educado e disposto como sempre.
- Sim, e onde entra essa “bendita” moça nisso? Beatriz, você não vai nos meter em um escândalo.
Sorria timidamente constrangida pela própria ideia, mas ainda assim:
- Só posso dizer que com minha ideia arrumo um pai para a criança, um marido para ela. Ninguém aqui tem a opção de escolher com escândalo e sem escândalo. Vai com escândalo mesmo.
A mãe que a princípio simpatizou com a firula começou a não gostar. Isso tudo mexia com sua moral tanto quanto a vergonha da filha, grávida de um filho sem pai. Repetia para si mesma: - Sem pai!
- Olhe Beatriz, se você supõe resolver um pecado com outro pior, fique sabendo que lhe coloco para fora de casa antes dessa… - olhava para Clarice com um furor nunca visto antes – antes daquilo ali.
A essa altura, Clarice já a muito tempo havia perdido a identidade. Não era mais Beatriz, era um objeto tão abaixo dos outros que compunham a sala que nem nome tinha. Logo o plano ficou exposto, o que não era nada sutil ou elaborado, mas nem por isso deixava de ser ousado.
A ideia é que na próxima festa em família, os olhares chorosos de do casto rapaz seriam atendidos, e não só sob um ponto de vista parcial. A irmã autoria da ideia enfatizava com a fanhosa fazendo um círculo com o indicador e o polegar na mão direita:
- Ele vai ter tudo que ele sempre quis. Tudo! Ouviu? Eu disse tudo!
Cabia a jovem mãe fazer de sua beleza um chamariz para Joãozinho, que por sua vez, levado entre um gole outro de bebida, deveria ser arrastado para algum local discreto. Na realidade, nem precisava consumar o ato, mas, fazer com que ele chegasse o mais próximo possível de perder o controle, simulando assim não um estupro propriamente dito, mas um deslize.
A mãe já coautora contribuía:
- Essas coisas acontecem dia e noite. Não seria incomum ele perder o controle e tentar agarrá-la. Muito menos seria ela ceder, como de fato já aconteceu sabe Deus com quem.
A verdade é Clarice já erguida perto da mesa onde se dava o estratagema recusava-se a acreditar. Olhava para mãe e irmãs sem reconhecê-las em suas personalidades. O encanto se desfizera com a notícia de sua gravidez por todas as partes naquela família. Não só ela se revelara uma inconsequente e pecaminosa, mas na mesma oportunidade, e quase tão rápido quanto, mostrou-se o número de sepulcros caiados com quem convivia.
A irmã, capaz de comprometer a vida de um rapaz cujo qual só lhe direcionara respeito, educação, atenção em todas as oportunidades. A mãe mostrou-se um misto de tudo que ela mais desprezava. Falsidade, oportunismo, tudo em prol de uma boa aparência perante os outros, Quis chorar mas dessa vez a raiva quem lhe tolheu as lágrimas.
Dias depois estava ela, a mãe e as irmãs na festa. Dona Roberta as recebia prontamente junto com a filha Bianca, já de fitas nos cabelos e os pés imundos de barro. Jamais saberia que a festa de sua filha não passava para aquela família simpática e sorridente de um mero alçapão para casamento.
- Clarice, já o vi atrás das barracas lá atrás. É certo que ele também nos viu. Você já sabe o que fazer. Tire-o da vista de todos, dois ou três copos de cerveja e pronto. Ele vai esquentar feito brasa, - e repetia com a mãe fechada em uma figa - feito brasa!
- Não vou fazer isso Armínia. Eu não consigo. Eu não quero.
A mãe beliscando-a pelas costas tremendo-se toda fala:
- Ninguém está nessa festa idiota por quê quer sua vagabunda. Nós só estamos aqui por sua causa, e para lhe fazer o favor de não deixar que saibam quem você realmente é. Ninguém aqui está lhe pedindo nada. Você vai fazer o que eu mando, se não eu arranco esse moleque de sua barriga com as unhas.
Sentiu latejar os músculos das costas costas calada. Os olhos fizeram-se em brasa no mesmo momento, mais ainda do alto da dignidade que lhe restava concordou. Rapidamente saiu e acenou para o casto. Joãozinho apareceu sorrindo e com um terço minúsculo entre as mãos. Saíram de perto de todos, conversaram alegremente.
De longe via-se Clarice colocar os dedos no nariz do rapaz. Este, por sua vez gargalhava indiferente para o mundo. Parecia mentira que em uma tarde daquelas a felicidade apresentar-se-ia para ele assim, facilmente, ao seu alcance como uma fruta pronta para ser colhida.
Em seu vestido de renda, caminhava com ele por toda a casa e jardim. Em cada canto, quando não vistos, bebiam alguns goles de cerveja preta. Ela, ainda trêmula de ira com plano que se fez sobre sua vida, onde de protagonista de uma história passou a ser um pião em tabuleiro, passou a odiá-lo a cada riso. A cada toque que ele tentava parecer acidental, mais o nojo daquilo tudo exalava. Pela janela dava para contemplar a satisfação que suas irmãs assistam ao teatro que ela representava.
De súbito o carregou para o fundo da casa onde não havia ninguém. O beijou sofregamente. As mãos de Joãozinho trêmulas teimavam com a tentativa de parecer seguro, de ser homem, de mostrar-se merecedor daquilo que tinha em mãos. Tudo inútil, tudo disfarce. Ela também era uma mentira de homem. Sem que ele visse, ela observou as ferramentas grudadas em um quadro de madeira atrás dele. Uma ideia estranha pousa-lhe a mente.
A mão de veludo pousa sobre uma chave de fenda. João, no delírio da própria carne não sentiu o primeiro golpe. Sente algo frio escorrer pelo pescoço quando olha de repente. O segundo entra em cheio peço pescoço e o terceiro no peito. Assim foram mais cinco por todo o corpo. Clarice se afasta para observar sua obra. O sangue se esvai abafado pelo barulho da festa escorrendo pela grama rala. Eram cinco da tarde e o tempo parecia ter parado. Parecia que em sua mente se repetira todos os fins de tarde que já vivera. O tempo se cristaliza as cinco da tarde.
Antes que alguém visse levanta o arame e some atrás da casa vizinha. A contorna e ganha a rua. Não dera nem cem passos e ouvira os primeiros gritos. A festa em pânico com o casto nos braços, mas já era tarde. Joãozinho nunca estivera tão no diminutivo quanto agora. Clarice estava livre. Seria mãe de um menino chamado Armando.
Antonio Sávio. 2015.
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