Os que amei, onde estão? Idos,
dispersos,
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...
......................................................
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,
Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.
Antero de Quental, in "Sonetos"
arrastados no giro dos tufões,
Levados, como em sonho, entre visões,
Na fuga, no ruir dos universos...
......................................................
Mas se paro um momento, se consigo
Fechar os olhos, sinto-os a meu lado
De novo, esses que amei vivem comigo,
Vejo-os, ouço-os e ouvem-me também,
Juntos no antigo amor, no amor sagrado,
Na comunhão ideal do eterno Bem.
Antero de Quental, in "Sonetos"
A equação parece simples e nem necessitaria da ajuda da matemática. Imaginem uma garota bonita, meiga, doce, filha de um médico
renomado, nascida na capital, com todas os desejos de uma criança totalmente ao
alcance das mãos. Os mais simples anseios adolescentes ali estavam
perfeitamente atingíveis. O caminho mais previsível seria relegar os estudos a
um segundo plano, meter-se em festas , ter a praia como uma extensão da sua
casa e tomar o shopping center como seu templo maior, onde passaria a fazer oferendas diárias
ao mais sagrado deus da modernidade : o consumo. Depois, certamente, apareceria
o casamento perfeito e nem haveria a
necessidade de se preocupar com o futuro. Viriam alguns filhos que seriam
criados afetuosamente pelas babás, pagas regiamente, e a vida se resumiria a
viagens, passeios e deleites. Os frutos da existência estavam ali pendentes em
galhos baixos, prontos para a colheita diária.
Este
talvez seria o caminho trilhado por incontáveis dondocas dos dias atuais. A
felicidade vista ali na prateleira da loja de departamentos pronta para ser
adquirida , dia a dia, nas mais variadas sessões. O cartão de crédito seria o
ingresso de cortesia para o Shangri-lá. Pois bem, pensem, agora, num anjo que ,
simplesmente, resolve nadar contra a corrente e escolhe trilhar, biblicamente,
o caminho estreito ao invés da highway.
Ela
se chamava Marinila e fez-se aluna dedicada, enveredou pela Medicina e
formou-se com aquela chama hipocrática de tratar e curar os mais necessitados.
Poderia escolher uma especialidade rentável, destas que enchem os olhos dos
recém-formados da atualidade tão afeitos
às cabines duplas. Eles babam de satisfação e descobrem, rapidamente, sua
vocação, no sonho certo do pote de ouro
ao pé do arco-íris. Ao invés disso, ela buscou o patinho feio da sua profissão
: A Medicina Social. Poderia, mais uma vez, ter se dedicado única e
exclusivamente ao bem-estar da sua própria família. Carregava consigo, no entanto,
a vontade de mudar o destino terrível de
uma outra família que houve por bem adotar : a de milhões de desafortunados que
migalhavam no país , diuturnamente, por uma consulta, um exame complementar, um
medicamento. Profundamente religiosa – uma faceta que herdou indelevelmente da
família—descobriu cedo que a doença estava intrinsecamente ligada à política e
que , como diria Foucault, para ser sadio o homem necessitaria primeiramente
ser liberto.
Num
crítico momento porque passava o Brasil, meteu-se na luta desigual que redundou
na Constituição de 1988 e nos alicerces do Sistema Único de Saúde. Envolveu-se,
logo a seguir, nas gestões municipais do SUS, no interior do Ceará, naqueles
terríveis instantes da implementação do novo Sistema, nadando contra as fortes
correntezas contrárias da Medicina Privada. Como Secretária de Saúde, deixou um
legado inesquecível de trabalho árduo, técnica afiada, administração sóbria e
solidária, e honradez absoluta e
irretocável. O Cariri viu, diante de si, a mais completa , justa e bem intencionada
Secretária de Saúde de toda sua história. Depois, ascendeu à vida acadêmica,
como professora e Coordenadora da Faculdade Federal de Medicina do Cariri, após
cumprir, com galhardia, Mestrado e Doutorado na Itália. Os alunos liam
facilmente nos seus olhos que a Medicina não era um ofício mas uma Arte, que o médico trabalhava num templo e não em
uma oficina.
A
batalha maior da sua vida, no entanto, estava ainda por vir. No auge das vidas
profissional e pessoal, eis que o
destino lhe põe face a face com o inimigo contra o qual batalhara durante todos
seus dias : a Moléstia. Enfrentou-a com força hercúlea, instante a instante, minuto a
minuto. Manteve-se impávida ante o sofrimento e a dor, fazendo tremular, até o
fim, a verde bandeira da esperança. Nestas esquinas tortuosas da vida é que se
percebe, claramente, a religiosidade de
superfície. Do seu corpo já frágil, porém,
brotava uma luz incandescente, reflexo da profunda espiritualidade que imantou
toda sua existência. Ante o desespero dos amigos mais próximos, pedia que
orassem simplesmente para que se fizesse a vontade de Deus e não para que Ele
viesse a mudar os seus desígnios.
Estas
palavras saem apenas agora depois de quase um ano do voo último do nosso
pássaro. É que para todos nós, Marinila
se mostra ainda tão vívida , parece que encontraremos aquele sorriso aberto e largo na quebra da próxima esquina. E
a ausência se faz insidiosamente, como
um caruncho que nos vai , lentamente, roendo as fibras da nossa alma. A saudade, no entanto, esmaece um pouco quando
vemos diante de nós um outro irmão que sofre, uma injustiça que precisa de luta
para ser corrigida, uma caridade que
necessita transformar-se, urgentemente, em justiça social. Marinila, como por encanto, chega então com o
seu sorriso e sua meiguice de outrora, junta-se a nós no Amor sagrado, na
comunhão universal do eterno Bem.
Crato, 16/04/15
Um comentário:
Zé Flávio
Confesso que fiquei muito emocionado com o seu texto. Não a conhecia, mas você conseguiu transmitir a emoção que uma vida bem vivida como foi a dela transmite. Certamente Deus estava precisando de pessoas assim junto dele.
Que texto bonito! Um grande abraço.
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