E os anos se vão sucedendo, sem que a gente nem perceba. As primeiras
décadas parecem a lenta subida de uma rampa: dá para curtir a paisagem,
prazerosamente dividir com os companheiros de jornada as sensações da viagem.
De repente, chegamos a um topo que é
sempre imprevisível e é como se o carro
disparasse , ladeira abaixo. As imagens passam estroboscopicamente, os amigos
se dispersam, como por encanto, e a vida
segue num estranho frenesi, enquanto esperamos
a beira do precipício e o ruflar inconsequente das débeis asas do Ícaro.
Pouco a pouco,
ante a perspectiva do voo, nossa viagem vai se tornando mais e mais solitária.
Os companheiros tomam estradas paralelas, seguem cursos inesperados, buscando
todos um inexistente Shangri-lá. Como Fernão Dias Paes Leme, acabaremos cedo ou
tarde descobrindo que eram falsas as almejadas esmeraldas. O tesouro terá
ficado , talvez, espalhado pelas trilhas :
no bem que possamos ter partilhado, nas lágrimas que por ventura
ajudamos a enxugar, nos etéreos momentos de simples e cristalina felicidade que
dividimos com os que estavam no caminho,
ao nosso lado. Quando levantarmos o voo final, logo ali, na plataforma
do despenhadeiro que nos aguarda à frente, essas certamente serão as imagens
que brilharão nos nossos olhos, antes do impacto derradeiro nos imperceptíveis
rochedos pontiagudos do fundo do abismo.
Abaixo,
a visibilidade é pouca, a bruma feroz. O que nos espera naquelas abissais
regiões , quando as asas se partirem e o remanso último nos
venha a sorver para goela do tempo ?
Alguns imaginam que , lá embaixo, exista um éden nos esperando, como conforto
final do nosso mergulho : cascatas, música inebriante, paz. Uns até garantem que nos será permitido
voltar e tentar outras trilhas mais amenas e menos penosas, para outros mergulhos menos turbulentos e outras aterrisagens mais dóceis. Asseguram até
que exista uma grande Torre de Controle invisível e poderosa ( com um estranho
e enviesado censo de justiça) que
controla todos percursos aéreos e decide
sobre pousos, decolagens e colisões. Difícil compreender as reais regras e objetivos desse rali vital com partida “no nada” e fim “no
coisa nenhuma”: sem louros, sem prêmios aos vencedores. À beira do pélago, são meros
sonhos todas as conjecturas: apenas o vórtice é real.
Dentro
de cada piloto, no meio da vertigem, no entanto, existe um menino, escondido em
algum cantinho do bólido. É preciso, na disparada, encontrar esse garoto. Ele
nos reensinará que a essência de tudo
reside na brincadeira de hoje e não na perspectiva do Papai Noel que poderá ou
não vir no Natal. Ele mostrará que alegria está aqui ao alcance das nossas mãos:
na simplicidade do pião de goiabeira e da bola de meia. Papai do céu está longe
a cuidar das suas estrelas, pouco nos
interessa o que existe do outro lado do muro. Deixemos lá a vida com seus
bichos-papões. A felicidade está segura
aqui no nosso quintal, brincando conosco de esconde-esconde .
J. Flávio Vieira
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