Solidônio Canabrava tinha uma pequena loja de ferramentas em Matozinho. Negociava implementos metálicos, como dobradiças, armadores, ferrolhos, correntes pregos, parafusos, foices, martelos. Talvez tenha sido a proximidade e a dureza desse material, que ele tanto manipulava no dia a dia, que terminou por impregnar seu temperamento de uma a uma certa acidez e petrificação. Tornara-se, aparentemente, do reino mineral, antes que o tempo o levasse a esse que é o destino final de todos os viventes. Era ríspido, direto, sistemático: com ele não tinha perreps. Intolerante, não aceitava perguntas bestas, arrodeios desnecessários, eufemismos, cerca-lourenços. Sua fama espalhara-se por todos arredores da vila. Os que o conheciam , tiravam de letra a aparente estupidez de Solidônio e até cutucavam a onça com vara nanica, esperando a resposta pronta e carrascante como mourão de cerca. Os de fora, no entanto, tantas e tantas vezes se incomodavam com a rudeza do comerciante. Como se explicar que quem quer pegar marreca viver gritando : xô ! Geralmente, depois de perguntas redundantes, como:
--- Esse armador, seu Solidônio, é pra armar rede ?
Vinha a resposta brusca e incisiva :
--- Não, Senhora ! Imagina ! Esse armadorzinho é pra enfiar em cu de sabiá e pegar elas como se fosse anzol!
E, imediatamente, tangia o perguntador peba, da sua loja, com o mote de sempre :
--- Arreda ! Arreda, Dona Empaia !
Contavam-se as histórias de Solidônio por toda redondeza, umas verídicas e a grande parte delas nem tanto : foram aparecendo folcloricamente, no fluxo ficcional da memória coletiva de Matozinho. Uma rezava que ele estava arrumando alguns rolos de arame farpado na loja, quando feriu a mão acidentamente, no ponta aguda do arame. Continuou a arrumação como se nada tivesse acontecido. Logo depois, novamente, repetiu-se a mesma tragédia: as pontas farpadas foram de encontro aos dedos de Soledônio. Ele não teve conversa : olhou firmemente para o rolo e disparou :
--- Ah ! Já sei ! Tu tá querendo é carne, né ? Pois toma ! --- Enfiou a mão umas quinze vezes no rolo , quase perdendo todos os dedos.
De outra feita, conta-se, sentado, comendo mel de engenho, por duas vezes, o mel caiu e lambuzou sua longa barba. O velho não contou conversa. Olhou pra barba fixamente e logo sapecou o pires na cara , ameaçando a moita de cabelos:
--- Ah ! Tu num é diabética , não, né? Tu quer é mel, é ? Pois toma !
Foi por essas e outras que dali , também, saiu o apelido do nosso personagem, embebido na grossura que lhe era a maior característica :
--- Pentelho de Capivara !
Claro que Solidônio não suportava o epíteto, nem sequer quaisquer palavras que por acaso lembrassem esse nome. Por isso mesmo a alcunha pegou como catarro em parede.
Semana passada aconteceu o inesperado. Canabrava tinha um pequeno engenho de cana de açúcar movido ainda a máquina a vapor. Uma das grandes moendas quebrou e tiveram que suspender a moagem. Onde diabos encontrar uma estrovenga daquelas ? O maquinário tinha sido importado , muitos anos atrás, da Inglaterra, pelo avô de Solidônio. Os engenhos estavam quase todos de fogo morto. Em tempos de mariola, Coca-Cola e chilitos, quem diabo queria comprar batida, garapa, alfenim e rapadura ? O eito de cana, no entanto, estava cortado e parar tudo era um prejuízo danado.
Canabrava soube que, em Serrinha dos Nicodemos, existia um velho que tinha um engenho similar ao seu e que estava parado há muitos e muitos anos. As moendas, segundo lhe tinham adiantado, estavam novas e a história é que O Coronel Balbino, o dono da fazenda, falara , diversas vezes, na venda daquele mundo de ferro, inclusive para ferro-velho. Soledônio , então, chamou um velho choffeur de praça e resolveu ir negociar em Serrinha a compra da moenda com Balbino. Durante a viagem, no entanto, o motorista o alertou. O coronel era um bicho do mato, cabra bruto e indomável como um chucro. Para se ter uma ideia, alertou : o apelido dele é : “Apito de Engenho” ! Será que o homem é bruto ?
Seguia a viagem e o motorista continuava atemorizando o velho Solidônio:
--- O Senhor é que sabe, seu Pentelho... ou... Seu Solidônio . Ele vai dar um coice danado no senhor ! Pode esperar! Se eu fosse o senhor eu não ia não !
Canabrava, no entanto, neste mister tinha PHD e M.B.A. Não quis conversa, nem mostrou-se temeroso. Mandou picar viagem. Vamos simbora !
Tardizinha chegaram , por fim, nas terras de Balbino. Pararam defronte a casa alta, onde , após infindáveis degraus lá estava o coronel refestelado numa preguiçosa, assistindo aos últimos estertores do dia. Solidônio, desceu do jipe, mandou o motorista esperar um pouco , subiu calmamente a escada. E, sem delongas, fitou o coronel e perguntou ?
--- O senhor é o coronel Balbino , se má pregunto ?
O velho, com aquela cara dura de cobrador , sem o fitar nos olhos, latiu de lá:
--- Sou sim, por que ? E se não fosse, você tinha alguma coisa a ver com isso ?
--- Né por nada não, Coronel ! Pegue sua moenda e meta no cu, joviu ?
Desceu os degraus, entrou no jeep e voltou pra casa, após a mais rápida negociação já registrada nos anais do CDL de Matozinho.
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