Após a interrupção da série sobre o Chile, hoje retorno com mais um texto sobre a Ilha de Chiloé.
Era uma manhã fria, de
névoa densa e baixa, com o Oceano Pacífico em frequente ondulação, embora de
pouca amplitude. O catamarã que transportava o carro em que estávamos, entre o
continente e a Ilha de Chiloé não balançava muito e fomos para o alto dele a
experimentar o agasalho quase absoluto frente ao intenso e cortante gelo dos
ventos daquele tempo ruim enquanto vivíamos a paisagem.
Chiloé não fica muito
distante da orla continental, tem uma grande ilha, com várias cidades, a
extensão principal tem mais de duzentos quilômetros, nela nascem e desembocam
rios, existem montanhas, inúmeros acidentes geográficos costeiros e um
arquipélago de ilhas a rodear-lhe. Vivem no arquipélago mais de 154 mil
pessoas.
Suas cidades principais
são Ancud e Castro. Os habitantes são identificados como chilotes e ele têm a
sensação plena de que estão na ponta sul do mundo. Pela formação de seu povo,
na fusão de ameríndios e europeus as noites e dias são diferentes. Quando o sol
desaparece na risca do Pacífico, a noite se adensa de plenas “americanidades”, os
seres míticos descem como uma bruma à realidade ancestral que teima em
manifestar-se com as “pincoyas”, os “traucos” e toda uma rica mitologia
chilota.
Chiloé foi um objetivo
estratégico para a conquista dos bravos araucanos e suas águas já eram
navegadas pelas naus espanholas, vindas do vice-reinado do Peru desse a
primeira metade dos anos de 1500. Nas águas de Chiloé o brilhante poeta dos
Araucanos don Alonso de Ercilla e Zúñiga navegou na missão conquistadora em que
era parte.
Os espanhóis, já em
1567 fundavam vilas, entre as quais a capital atual de Chiloé que é Castro.
Chiloé se desenvolveu nos negócios do mercantilismo espanhol e foi um dos
últimos territórios do atual Chile a separar-se da Coroa Espanhola. O movimento
de separação do Chile da Espanha ocorreu durante as invasões napoleônicas da
península ibérica, no mesmo ano em que a corte portuguesa fugiu para o Brasil.
Liderada por Bernardo O´Higgins isso aconteceu entre 1817 e 1818. Mas Chiloé só
fez parte da nova República a partir de 1826.
Aí foi o projeto de
conquista do extremo sul e foi de Chiloé que partiu a expedição que conquistou
o estreito de Magalhães para o chilenos em 1843. Chiloé hoje é um dos centros
da produção do salmão, onde os peixes atingem a maturação na costa marítima e
por isso tem um valor econômico estratégico para o país. E como o interior
nordestino e as regiões amazônica ainda sob forte influência das culturas
indígenas, Chiloé é de uma riqueza extraordinária em cestarias, enfeites,
cerâmicas e trabalho com madeira. A riqueza da vegetação de juncos, capins,
plantas arbustivas típicas de costas, faz de Chiloé a singularidade que é
encontrada e vista, por exemplo, no museu de Ancud.
Se os nordestinos
sentem na sua epiderme todos os ventos da mitologia ancestral, em Chiloé ela é
imensa, guarda a memória dos conquistadores espanhóis e como aqui formam um
sincretismo mitológico que por vezes até se assemelha aos nossos. Não sei dizer
se as semelhanças são pela identidade ibérica de nossos povos ou pela
identidade americana do primórdio da ocupação do continente pelos seres
humanos.
Como o El Caleuche que
é um barco fantasma que aparece e desaparece num repente, todo ele iluminado,
com sua tripulação fantasmagórica cantando e dançando ao som de encantadoras
melodias. Os comerciantes que tiveram a sorte de negociar com a tripulação se
tornaram prósperos. A Pincoya é a Afrodite de Chiloé, a deusa da fertilidade
que é uma mulher belíssima e tudo depende do sentido em que ela dança quando
sob o estímulo envolvente da voz melodiosa do seu marido o Pincoy. Se a sua
dança gira em direção ao mar haverá abundância e se em direção à terra, haverá
escassez. Considere-se que a fertilidade de Chiloé é a pesca marinha.
E a mitologia vai num
paralelo com a nossa ou não com personagens míticos como a Fiura uma mulher
velha asqueroso que endoida às pessoas, o Camahuet que é um touro com
unicórnio, o Brujo, o Invunche, a Viuda, o Trauco, La Violadora, El Cuchivilu,
Ten-Tem Vilu e Cai-Cai Vilu; El Culebrón, El Coo, Chihued; Basilisco e o
Caballo Marino. Mas o paralelo desta mitologia conosco se encerra na nossa
falta de vontade com nossa cultura. Eu sei disso tudo porque em Chiloé eles vendem
um simpático livrinho com estas coisas.
O Chile é um lugar
longo, montanhoso, estreito, vulcânico e inteiramente sujeito a terremotos e
abalos de todas as naturezas. Como todo povo em suspense suas paixões são
maiores, seu espírito transformador intenso, mas igualmente é maciço e
esmagador o braço de sua elite vinculada à exportação de commodities,
especialmente o cobre. Em Chiloé o maior evento dos últimos séculos foi um
terremoto com epicentro em Valdívia que abalou Chiloé de tal modo que uma parte
da ilha afundou mais de metro no magma por onde as águas do mar inundaram
terrenos que até então eram cultivados e habitados. Isso aconteceu em 1960 e o
sofrimento de Chiloé foi tremendo, abalando suas vilas e cidades e sendo a ilha
agredida por duas tsunamis simultâneas uma entrando pelo estreito com o
continente e outra pegando a ilha de frente.
Conversei com um
professor aposentando que naquele dia estava dando aulas numa pequena ilha em
frente a Chiloé. Ele nos disse que o chão balançava como se balança um lençol
para tirar-lhe o pó. Após cessado o desastre maior ele saiu com um pequeno
barco para procurar pessoas isoladas na costa da pequena ilha e quando chegou a
um dos lados o mar borbulhava como uma panela no fogo. Não era uma fervura, era
como água mineral gasosa.
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