Pedro saiu cedo de casa e cedo chegou ao trabalho. Cigarro
no bico digitou por horas na redação do jornal. Detestava chavões e por
isso evitava beber café por ali embora gostasse. Era uma vaidade besta,
uma tentativa de ser diferente entre os diferentes. De poucas amizades
pouca falava e era conhecido como um idiota arrogante.
Ao fim do dia passou na praça da luz. Fumava ali ao som da brisa do mar
vendo os coqueiros vergar-se ao vento. Não sabia explicar por qual
motivo os prazeres da vida eram tão rápidos. Logo daria à hora de voltar
para casa ou pegaria um trânsito infernal pela avenida Anita
Garibaldi. Ao virar-se da praça para frente do boteco que estava viu
Amanda, sua esposa passar de carro com um homem as gargalhadas. A
angústia, o medo e a raiva apareceram-lhe pressionar os globos oculares.
Não poderia ser verdade.
Em poucos segundos viu todos os defeitos de sua esposa e toda uma
retórica de Cícero emperrar em sua garganta comprometendo-lhe a
respiração. Pagou e não esperou o troco. Em uma tragada a vermelhidão do
fumo resumia o estado de seu cérebro. Narinas dilatadas entra no carro e
arranca. Ainda sabia fazer as irresponsabilidades que há anos
recusava-se, como homem responsável, a fazer.
Passou dois faróis vermelhos e acompanhava o carro dela de vista. Quase
atropelou um ciclista que, com o susto jogou-se para o lado de um posto
de gasolina. Indiferente como um cego prosseguiu. Nesse instante já
estava mais calmo, já tinha a situação sobre controle e a traição
sofrida já lhe era quase um prazer. Sorria dentro do carro e olhava-se
pelo retrovisor sorrindo e dizendo: - Putinha barata. Aliás, nem tão
barata. O seu caso transa contigo de graça e eu quem te pago comida,
roupa lavada e viagens. Enfatizava com ódio: Viagens!
Na esquina, próximo a um retorno o carro para e estaciona em uma galera
e descem os dois. Ela nunca parecera tão alegre. Os cabelos ao vento
lembram uma propaganda de xampu. Isso o indignava ainda mais. Entraram
em uma perfumaria e Pedro em uma floricultura ao lado. De lá ouvia as
gargalhadas e palavras entrecortadas:
- Amor olha este.
Pensava Pedro: - Ele está sentindo algum perfume que ela sugere.
A morena baixa de seios pequenos da floricultura atalha:
- Senhor, posso ajudar?
-Sim sim! Hortências por favor!
Hortências eram as preferidas de Amanda. Lembra quando aos vinte anos
pintara um quadro dela com um ramo delas ao colo. Achava aquilo meio
brega, mas cedera embriagado de amor. Pensava com ódio quantas vezes
cedera por amor. Uma promoção na Europa recusada, viagens não feitas,
diversões amputadas em troca de quê?
Apanhou a compra medíocre e ainda conseguiu ouvir a última frase deles na botica:
- Não posso chegar com um perfume desses em casa. Isso é caríssimo,
meu... – Baixou a voz e sussurrou no ouvido do amante: - Ele ia notar. É
caro demais. Teria que dar satisfações.
Nesta frase ele gozou de um prazer estranho. Embora sofresse pela
traição era mínimo tudo isso. Iria tripudiar de seus sentimentos de um
modo que lhe chamariam de mostro. Correu para a botica e comprou o
presente recusado pelo cálculo dela. Ainda seguiu-os e viu quando
pararam em um restaurante.
Sorriam em uma alegria que era uma afronta. Ela tinha os olhos
reluzentes e ele, este estranho canalha de unhas bem feitas. Devia ter
menos de trinta e cinco anos. Ela bebia um vinho branco e depois algo
que ele não conseguia identificar de longe. Achou por bem ir para casa.
Abriu a porta do guarda roupas e no maleiro colheu a câmera nova que
nunca usara. Ligou-a escondida em uma tralha de livros e bonecas de pano
em uma estante sobre a TV. Ás seis e meia ela chegara. Tinha uma mesa
feita, lindíssima. As velas brilhavam nos castiçais e casa cheirava, no
ar uma fronteira entre um incenso de acácias e as ervas finas do molho
carne. Ela entra surpresa com olhos arregalados e um sorriso preso no
canto da boca. A palavra amor arrasta-se no ar:
- Amor? O que isso tudo?
Ele quase feliz com o teatro armado fala cínico:
- Já respondeste meu anjo! É amor.
Pedro falava a palavra amor em um sadismo inacreditável. Ele mesmo dizia para si: - Estou um espetáculo!
Ele a arrastou para sua cadeira e pediu:
- Não diga nada meu anjo. Apenas prove.
Ela feliz com a surpresa obedeceu. Provaste a carne que quase derretia em sua boca:
- Delícia. Mas amor por que tudo isso?
Ele olhando em seus olhos apenas repetia:
- Coma coma!
A sua frente pôs-lhe o presente. O perfume que não comprou ele a dera.
Estava ali, encaixado e com fitas verdes. Ele sabia que ela adorava
verde. Ela de imediato apanhou o presente e abriu como uma criança.
Olhava-o e sorria. Nem desconfiava. Deu a volta na mesa e o beijou. As
palmas das mãos postavam-se em seu rosto.
Ele sorria ao vê-la feliz. Pensou: - É muita felicidade para uma
prostituta não? Imagina seu pai Amanda. Seu Leopoldo. Trabalhou feito um
remador de Bem-Hur para te educar e você se mostrar uma prostituta.
Ao dizer isso ele sorria e diz olhando nos olhos dela:
- Eu te amo!
Sabia que declarações assim ditas logo após tê-lo enganado talvez a
angustiasse. Isto é, caso ela ainda tivesse um senso moral mínimo.
Quando já estava alta do vinho e gargalhando entre conversas diversas
ele perguntou sóbrio:
- Amanda meu anjo. Mulher dos meus filhos...
Ela, como quem se deixasse levar por um roteiro implícito conduzido por ele falava:
- Diga Pedro, meu eterno amor!
E ele disse:
- Por que escolheu a si como puta?
Após dizer isso ele sorriu. Cravou o garfo em um pedaço de carne e
esfregou-o na porcelana branca manchada de molho. Era o seu último
pedaço. Agora queria comê-la viva.
- Que palhaçada é esse Pedro? Está bebendo?
Ele que era só sorriso mostrava sua taça límpida. Não gotejou nada na
mesma e ela por sua vez estava já tomada pelo calor do álcool do vinho.
Pensou consigo: - Dominei-a. Idiota.
- Não meu anjo – insistia na palavra anjo como quem usasse um cálculo
preciso – não estou bebendo como pode ver. Diga-me, por qual motivo
você, educada em escolas de freiras escolhei essa nobre profissão de... –
parou para por o vinho em sua taça. Ergueu-a de encontro à luz e soltou
as sílabas como música no ar: Pros-ti-tu-ta!
Sentiu a cabeça pesar repentinamente. Parecia que as palavras de Pedro,
soletradas assim era cada sílaba uma rajada de metralhadora. Sentia
lâminas nas palmas das mãos. Os olhos turvos viam a imagem de Pedro mais
jovem, quando trocaram os primeiros olhares, o crucifixo em cima da TV.
Via o Cristo sangrando e a lembrança do padre Adalto, em sua missa
crisma pregando: - Leiam em Crônicas, capítulo dois, 23: 13! Ela
lembrava as últimas palavras frescas em sua mente: Traição, traição!
- Pedro eu não fiz nada. Eu te juro!
- Você não me traiu anjinho caído! Você traiu a Deus, os seus pais, os
nossos... Ou melhor, meus, pois você não tem e nem os liga, amigos!
- Não vou ficar aqui ouvindo suas lições de moral! Quem é você? Já não estou me sentindo bem.
Ela entrou no banheiro e chorou copiosamente. Agarrada ao vaso soluçava
e sentir a fermentação do vinho com a carne vibrar em seu estômago.
Sentia de fato uma meretriz. Nunca havia sido tão humilhada, mas ao
mesmo tempo percebia que Pedro é quem era vítima de tudo. Ele não a
humilhara. O que fizera ela de sua vida. Uma vida de mentiras e
hipocrisia. De prostituição em cada ato, em cada vez que cedia a um
prazer barato em troca da obrigação, em cada deslize em troca da
edificação da própria alma. Lembrava dos livros que seu pai comprara
desde a infância, dos cursos pagos, das missas intermináveis, e como
tudo isso não passava de um teatro barato. Ela era de fato uma
prostituta tão barata quanto às das boates noturnas.
Pedro colheu a fita no gravador e foi ao escritório. Era de fato uma
obra de arte. Mas tudo aquilo era muito sujo. Era imunda a face de sua
esposa, assim como era indizível seu ato, seu teatro. Pensou que bem
melhor poderia ter sido uma surra. Ela choraria calada, mas, uma surra
não emenda um caráter perverso. Além disso, ele perderia sua razão,
seria um bárbaro, e não mais uma vítima. Pensou no amor que ainda sentia
por Amanda. Em cada gesto que ela lhe dedicara e ele a ela. Como podia
aquilo. A mesma mulher que lhe cortava o cabelo aos domingos, que lhe
comprava passagens, que lhe tirava aborrecimentos, era a mesma pessoa
que lhe traíra. A palavra traíra sova-lhe nos ouvidos como um cantochão
de barítonos. Chorou. Chorou e via os cabelos dela ao vento. O sorriso
límpido, que era sua posse, sua conquista mais satisfatória, era mera
ilusão. Não a possuía senão por empréstimo, por algumas horas fugidias
tinha em suas mãos seu corpo. Mas o corpo é uma miséria, pensava. Um
corpo tão somente é tão somente um pecado.
Voltou para cansado. Parecia que tinha a alma pisoteada por elefantes.
Abriu o portão que dava para o jardim. A ferrugem nas dobradiças rangeu.
Subiu os degraus e ao abrir a porta, de frente à escada viu o sangue
escorrer pela escada. Subiu e a achou no chão com os pulsos cortados.
Olhou-a e sentiu dó, não queria que tudo terminasse assim. Há poucas
horas estava feliz sentindo a brisa do mar, mas, a vida tinha disso,
tinha do livre arbítrio quando por fraqueza a alma torpe fala para si: -
Eu quero o pecado. O gozo nos erros. Será que Amanda tivera prazer
naquele teatro todo?
Ao seu lado um bilhete ensangüentado. Teve a esperança de ser um pedido
de desculpas. Certamente se arrependera e não suportava a culpa. As
mãos calmas puseram-se trêmulas quando leu:
- Pequei. Traí e não foi a primeira vez, porém foi a última. Espero que
esteja feliz, pois no pecado eu fui feliz.
Olhava pela janela que dava para o porto. O sol parecia-lhe maravilhoso.
Um comentário:
Excelente texto.
Abraços, Sávio!
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