O
Crato, a cana, o algodão e o arame farpado – por José Almino Pinheiro
Que aconteceu com o Crato? A Princesa do Cariri, não faz muito tempo, era
a segunda cidade em importância do Ceará. Usando os superlativos tão ao nosso gosto, se dizia
que o Crato concentrava os maiores e melhores colégios da região, tinha dois
grandes seminários, uma das primeiras hidroelétricas do nordeste, a maior
concentração de fábricas de algodão da região, o município era o maior
fabricante de rapadura do nordeste, tinha quatro cinemas, duas emissoras de rádio,
e muito mais.
Segundo o trabalho “Resgatando a História de uma
cidade média: Crato Capital da Cultura” dos autores João César Abreu Oliveira e Roberto Cruz Abreu, publicado
na Revista Historiar, ano II, n. I (2010), o município do Crato no
início dos anos 50 tinha 46.408 habitantes dos quais 24.786 na sede. Contava,
entre outros, com 28 estabelecimentos atacadistas, 323 varejistas, 413 indústrias.
No mesmo trabalho consta que o Crato, na década de 90, contava com 90.519 habitantes,
sendo na cidade 57.714. Contava com um total de 209 indústrias, com destaque para
a implantação da Grendene. Ainda segundo os autores do estudo, a cidade hoje está
com cerca de 131.000 habitantes e nesse período desapareceram 204 indústrias.
O jornal O Povo, on line, do dia 31.10.2011, no caderno de economia, divulgou
a relação dos 15 municípios do estado por importância econômica: 1. Fortaleza,
2. Maracanaú, 3. Juazeiro do Norte, 4 Caucaia, 5. Sobral, 6 Eusébio, 7 Horizonte,
8. Maranguape, 9. Crato, 10. São Gonçalo do Amarante, 11. Iguatu, 12. Aquiraz,
13. Itapipoca, 14. Limoeiro do Norte, 15. Pacatuba. O que chama a atenção é que
apesar do aumento populacional, em pouco mais de 50 anos, a cidade do Crato cai
do segundo para o nono lugar no ranking das cidades do estado. Quando se
observa o comportamento das administrações municipais do período, não fica
difícil imaginar o que aconteceu com o Crato. Como é mais fácil acusar os
outros, do que reconhecer a própria incompetência, sempre surgem desculpas de
perseguição política e econômica. Quase sempre os governadores levam a culpa
por retaliar o Crato. Mas com uma pequena olhada nos informativos do governo e câmara
legislativa, constatamos a quase ausência de projetos para a cidade. Sem
projetos específicos, claros e viáveis, realmente fica difícil que alguém de
fora da cidade, sem informações, ofereça soluções ou financiamento para
executá-las.
Vale a pena dar uma olhadela em uma
atividade econômica regional interessante que se aprimorou ao longo do tempo e
depois entrou em decadência e logo foi abandonada. Não houve nenhuma
preocupação de se entender o que ocorria, para que, com esse conhecimento, se procurassem
alternativas ao grande investimento financeiro e humano efetuado nessa
atividade em tantos anos.
A região do Cariri, com sua geografia, é
formada pela grande serra e estreitas faixas de terras férteis que acompanham
os cursos da água das fontes, onde se desenvolvia a agricultura permanente,
como a cana de açúcar, hortaliças, fruteiras, etc. A outra parte, grandes áreas
de terra seca, os ariscos, eram usados principalmente para o plantio de algodão
e capim. Na época das chuvas, nesses ariscos, se plantava também culturas de
ciclo curto como milho e feijão. No processo de divisão dessas terras, existia
a particularidade comum em que a principal fronteira do novo sítio era o rio ou
riacho, as outras duas principais fronteiras eram quase perpendiculares ao
curso da água. Desta forma, as propriedades dispunham de dois tipos de terras:
as margens dos riachos, úmidas e férteis e a parte mais acima, os secos ariscos.
Com esse arranjo fundiário peculiar, foi possível que os proprietários desses
sítios desenvolvessem uma cadeia de produção que na realidade foi um dos
principais motores do desenvolvimento econômico do Cariri.
Tomando
como ponto de partida o final da estação das chuvas começamos o processo. Concluídas
as colheitas das culturas de ciclo curto, começavam as colheitas do algodão e da
cana de açúcar. Com a moagem da cana vinha a respectiva produção de rapadura e
cachaça. Das três atividades, essas duas, eram as principais fontes de renda
agrícola dos sítios da região, o algodão e a cana, resumidamente descritas
acima, que têm maior visibilidade. A
terceira fonte de renda, a pecuária, tão ou mais importante que as outras passa
quase despercebida.
Com o arranjo fundiário, a produção
agrícola dos sítios e a grande serra, foi possível aos proprietários dos sítios
possuírem e manterem grande
quantidade de gado, e o que é
importante: a baixo custo. O tamanho do
rebanho de cada proprietário era determinado pela capacidade do seu sítio em
produzir alimentos para o gado por pelo menos 5 ou 6 meses. A alimentação dos
animais na época seca consistia, basicamente, nas sobras das culturas de ciclo
curto deixadas naturalmente nas roças (milho e feijão), do capim existente na
área seca e principalmente das sobras da moagem da cana de açúcar. O gado ainda
prestava um bom serviço gratuito aos seus donos, pois soltos nos ariscos, faziam
a poda dos arbustos do algodoeiro, comendo suas folhas ricas em proteínas. O plantio intensivo de capim em pequenas áreas
úmidas destinava-se principalmente às vacas produtoras de leite de quem as
possuía e não para o grosso do rebanho.
A chegada das chuvas deveria coincidir
com o final das colheitas e da moagem da cana dos sítios onde já fatalmente
rareava a comida para os animais. O gado, então, era simplesmente levado e
solto à sua própria sorte em cima da serra, o grande planalto da do Araripe.
Terras públicas, reservas da união, onde por princípio todos tinham o direito
de usar. Carente de água, mas com pequenos arranjos em forma de “barreiros”
para acumular água das chuvas era possível dispor de água e manter o gado. Em
cima da serra, existe o capim nativo e grande variedade de plantas onde os
animais soltos, andando livremente, podiam fazer a sua dieta.
A temporada acabava com a chegada da estiagem.
Os barreiros começavam a secar inviabilizando a permanência do gado. Com a
falta das chuvas, os proprietários de gado enviavam seus vaqueiros para
recolher o rebanho, o que era feito indistintamente. Para facilitar o trabalho,
os animais líderes naturais do rebanho, e as fêmeas, portavam chocalhos,
avisando sua presença aos ouvidos atentos dos vaqueiros que os recolhiam e os
encaminhavam para antigas clareiras abertas no “meio” da serra, conhecidas como
os “Cá te espero.” Em dias predeterminados,
geralmente de algum santo, o “Cá te espero” da vez, cheio de animais,
vaqueiros, caboclas, barracas de bebida, comida, era preparado para a noite que
passava a ser dos sanfoneiros, e o rela-bucho esquentava os dançarinos do
frio da serra. Pela manhã começava a separação do gado, de acordo com os
símbolos da comarca e marca individual de cada “coronel”, marcados com ferro em
brasa nos quadris dos animais. Era a ocasião de grandes negócios, rebanhos eram
vendidos, transferidos e os coronéis levavam de volta para casa apenas o gado que
o interessava. Novo ciclo começava.
Com o declínio do algodão e a chegada do
arame farpado, barato, vendido com financiamento a juros irrisórios, para
ajudar na sustentação financeira da recém instalada siderúrgica, começou uma
espécie de suicídio, com os próprios coronéis tomando posse ilegalmente de
terras em cima da serra e cercando-as com o tal arame. Com as cercas e
consequente limitação das áreas, o gado fica sem condições de andar e procurar sua
própria comida. As consequências são
imediatas, os donos de engenho, de repente são obrigados a reduzir drasticamente
seus rebanhos.
Assim, melancolicamente acaba um ciclo
de produção engenhoso e barato. De forma que os sítios, sem fontes de renda
compatível para seus donos, começam a desmoronar, e a antiga produção agrícola
é substituída pela especulação imobiliária selvagem, sem controle algum, que
não leva em conta os cursos d’água, as terras férteis nem produção agrícola de
qualquer ordem. Tudo isso sob os olhares complacentes das autoridades.
Este foi o fim das três principais
fontes de renda dos sítios: o algodão a pecuária e a rapadura. A rapadura, o
açúcar bruto da cana de açúcar é um alimento cobiçado, importante e antigo, que
chegou a nós pelas mãos dos árabes. O interessante é que no decorrer desse
tempo, uns 700 anos, as regiões produtoras de cana, na medida em que se
desenvolviam, transferiam para outras mais pobres a produção de açúcar.
Descobriram que se o açúcar em geral é um ótimo alimento para humanos também é
para animais. Com essa observação e a preocupação de sempre se adaptar às
mudanças, não perder os investimentos já realizados e, quando possível, agregar
valores a seus produtos, muitos países aumentaram os plantios de cana. O
excedente da produção da cana ou dos subprodutos da fabricação do açúcar é
destinado para ração animal.
O balanço financeiro não é complicado, não
precisa elaborações econômicas; observando apenas a prateleira da mercearia ou
a bomba de combustível do posto, constatamos que um quilograma de açúcar custa
cerca de R$ 2,00 e um litro de álcool R$1,50, enquanto um quilograma de carne custa
em média R$ 20,00. A cana de açúcar no Brasil, de forma geral, por acaso o
único, diferentemente dos demais países produtores de cana, optou por fabricar
álcool para carro em detrimento de comida.
Alguns países, a Holanda, por exemplo, importa
grande quantidade de melaço para compor a ração bovina e suína de seus rebanhos.
Em Cuba, o subproduto da fabricação do açúcar é usado na fabricação de energia
elétrica, de rações, indústria química e farmacêutica. As usinas de açúcar
cubanas ainda têm a obrigação de fornecer a alimentação para as escolas,
hospitais e outras instituições que estão em sua área de influência. Nos do
Cariri, nesse meio tempo, simplesmente não sabíamos o que fazer.
3 comentários:
Seria tão bom que os prefeituráveis do Crato lessem este texto de José Almino Pinheiro.
Quem sabe colheriam ideias para seus projetos de governo.
Vamos lá Zé Almino, escreva mais que a gente vai postando aqui.
Caríssimo Zé Almino.
Li o seu texto com redobrado interesse e achei-o de um conteúdo muito equilibrado e uma análise precisa do que vem acontecendo com nosso município. Confesso que saí enriquecido após a leitura desse texto. Seria bom que todos os cratenses dele tomassem conhecimento.
Meus parabéns e um grande abraço!
Querido Zé Almino,
Muito bom o seu texto. Me parece que ele extrapola os limites geográficos do Crato! Afinal, vazão de produto industrializado que muda a história toda do desenvolvimento de um local... acho que conheço este filme! por estas bandas do sudeste do país é o nosso querido... automóvel! que retificou e canalizou rios e córregos, espalhou asfalto impermeabilizando o solo, entupiu as vias terrestres e respiratórias e nos deixou parados... no trânsito. E as nossas lideranças políticas defendem a indústria automobilística com unhas e dentes, havendo eminentes políticos paulistanos afirmando na imprensa que o que atrapalha o nosso trânsito, veja você, são os ônibus!
Seria engraçado se não fosse triste.
Parabéns, Zé Almino, pela retomada da história do Crato num texto singelo e repleto de profundidade.
Saudações desde SP!
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