por José do Vale Pinheiro Feitosa




Viva junto à alma mais próxima e compreenda que a proximidade é a medida da distância. Que a distância que os separa é este movimento maravilhoso da matéria e da energia. A maravilha é apenas esta surpresa porque esta proximidade é tão diminuta entre os dois e é a inesperada distância.

José do Vale P Feitosa



quinta-feira, 1 de março de 2012

Janela


O frevo fervia na avenida, em pleno domingo de Carnaval. A troça se arrastava, rua abaixo, desordenadamente, com aquele andar de batráquio bêbado. À frente ,puxava o cordão o Estandarte rubro com letras douradas e pomposas : “TCM A vida é Maravilhosa” . Passistas, num delicado trabalho metalúrgico, espanavam o ar com o malabarismo frenético do passo : dobradiças, parafusos,locomotivas,ferrolhos , tesouras. Um pouco atrás, a banda atacava, com seus metais brilhantes, as sinuosas notas do “Fogão”, marcadas pela percussão impecável das caixas, surdos e ganzás. E a música imantava de uma súbita alegria o amálgama enorme de foliões fantasiados, no carnaval, com outras máscaras , outras vestes e outros adereços bem diferentes daqueles de que se mimetizavam na vida comezinha e cotidiana. Super-heróis, A La Ursas, Papangus, Fidel Castro, padres, frades , homens travestidos de mulher, de repente, caiam também na folia, engrossando o corso, rua abaixo. Até parecia que a vida era uma festa eterna e sem prazo para terminar. Como por encanto tinham evaporado : o trabalho, a escola, o chefe, a patroa embirrenta, o namorado ciumento, o “isso não pode”, o “é pecado mortal”. E a troça seguia ladeiras abaixo , ladeiras acima: sem destino predeterminado, sem porto, sem relógio que a acorrentasse os passos, sem freio, sem plano de vôo, sem regimento ou estatuto.

Defronte , no percurso, a Academia Santa Gertrudes , algo temerosa, se protegera com madeirites ao seu derredor . Como se as irmãs beneditinas que há quase um século ali oravam, se vissem, num átimo, ameaçadas no seu silêncio e no seu claustro pela alegria contagiante que soprava da rua, envolvida em cores, em música e em dança. E “ a cobra grande / que desce a ladeira / com gosto de gás” aos pouco se foi espremendo entre os madeirites da Academia, seguindo sua viagem hedonística. Neste momento, entreabre-se uma janela no andar de cima e surge um rosto de freira que sorrateiramente observa o desfile . Embaixo, no meio da turba, um folião olha a janela , sem compreender o inusitado da cena quase que surrealista. A freirinha sorri para ele, delicadamente, enquanto volta a fechar aquela fresta que, como um portal , se abrira para uma outra dimensão, para um outro planeta desconhecido e misterioso.

Por instantes , dois abismos se fitaram. O folião, na terra, contemplou o céu; a religiosa, dos píncaros, voltou-se para a terra. Na rua uma alegria franca inundava as pessoas, como que festejando o milagre da vida. No alto, uma felicidade contida debruçava-se sobre uma outra satisfação: a contenção e refreamento dos prazeres mais imediatos, para um outro big bang , bem além do nosso quintal. A porta do folião abria-se para um mundo concreto; a janela da freirinha estendia-se para um outro, menos palpável, menos visível. Por um minuto, no entanto, estes universos se tocaram e perpassou na cabeça do folião o doce gosto do paraíso possível e adiável e a religiosa, como um relâmpago, viu-se ladeira abaixo, sungando o hábito e fazendo misura com os pés. Até que a janelinha , como um portal, voltou a fechar-se e o silêncio firmou-se, novamente, como silêncio e a balbúrdia da avenida retornou a ser um monopólio da rua.

Em que lado da fresta Deus brincava? Em que extremidade do portal deslizava o pecado ? A verdade ressonava no prazer rasgado ou no orgasmo contido ? Em que ponta bailava o sagrado, em que extremo frevava o profano ? Na avenida ou no claustro? Ou os dois lados da janelinha não seriam apenas a continuidade de um mesmo Bloco Carnavalesco : “Vida Louca, Vida Breve em Folia “?

J. Flávio Vieira

4 comentários:

socorro moreira disse...

Beleza!

Ainda bem que o carnaval é finito, Senão te perderíamos.

abraços

jflavio disse...

beijo, Socorro! Quase num vorto!

Stela disse...

Que beleza, Zé Flávio! esse revelar do sagrado no profano, do profano no sagrado, na poética do carnaval olindense.
O alto da Sé, a vista que se deslumbra das duas cidades irmãs, a alegria rasgada do frevo, o mar, os quintais da cidade histórica, misturado ao suor, ao sol, à cerveja, ao cheiro do xixi, tudo isso é profano, tudo isso é sagrado, pois como sabemos em tudo está o divino.
Lindo texto, linda memória do carnaval.

jflavio disse...

Abraço a Stela pela paciência da leitura e por ter valido a pena. Sou um aficcionado do Carnaval Olindense, há mais de 20 anos lá estou religiosamente, já mereço até um boneco gigante. Abraço!